quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Epifania mal-interpretada

Era tarde. Quer dizer, à tarde. Eu caminhava pelo deserto semi-árido que é Brasília no período da seca, entre o Palácio do Buriti e o Memorial JK. Tinha perdido um ônibus, eu acho. Ou sei lá, acho que ia até o Sudoeste a pé, justamente por ter perdido o ônibus, isso. Ia passar na casa dela por algum motivo que não me lembro agora, só que era um motivo doído. Tipo acertar os detalhes da separação. Tipo pegar a caixa com as minhas coisas essenciais ("os quadros deixa aí que eu coloco pra vender numa galeria depois" - ela disse, muito vaca. Comprei aqueles quadros de um artista vanguardista que ela adorava a um preço absurdo, dá pra entender a revolta?). Enfim, eu tinha rompido com a mulher da minha vida, o ser humano a quem mais amei na face da terra e por quem briguei com minha mãe e fui banido de todos os almoços de família para sempre. Deus, como eu amava aquela mulher. Mas ela, bruxa má do oeste, percebeu que em algum momento eu a sufocava e quis dar no pé. Quer dizer, dar no pé é só pra ilustrar a situação, porque quem ficou sem carro e sem apartamento fui eu. Porque eu jamais deixaria a mulher amada e desamparada na rua da amargura. Sendo que a rua da amargura dela era um outro cara no meu apartamento. Que agora era dela. Não sou um monstro, sou um romântico burro e incorrigível.

Voltando. Perco o foco às vezes, desculpem aí.

Estava debaixo daquele calor inclemente de Agosto caminhando em direção à casa que um dia foi minha ouvindo uma das musiquinhas mudernês que ela gostava. Nem sei o nome da banda. Tinha colocado no meu mp3 porque me fazia lembrar dela, e sou desses que gosta de se torturar após um fim de relacionamento. Eu não gostava daquele tipo de música até ela aparecer na minha vida. Ela era mudernê, entendam, eu era um classicista chato, extremamente preconceituoso e sem vontade de conhecer nada novo. Brigávamos horrores por conta disso, porque ela queria ir pras festas de discotecagem mudernê da cidade e eu nem queria ir e nem queria que ela fosse, porque ficar sem ela por algumas horas me deixava em completo desespero. Eu emburrecia sem ela. Sabe como? Não sabia o que fazer das pernas. Mas ela queria ir, e batia o pé, e dizia que se sentia um pássaro aprisionado na gaiola comigo. Eu também odiava essas metáforas, ela era a rainda das metáforas, mas como eu a amava eu suportava isso. E depois que ela me deixou eu virei o rei das metáforas também, mas perdi meus amigos por conta disso. No fim das contas ela acaba indo pras festinhas mudernês e eu ficava em casa macambúzio olhando pro relógio de minuto em minuto esperando seu regresso. E quase sempre colocava um brega sofrido no som porque era assim que eu me sentia, um cara brega que sofria.

Vou tentar desenvolver o tópico sem resgatar esse tipo de lembrança dolorosa. Bom, era a tarde de um dia quente e eu tinha perdido o ônibus e então eu decidi ir caminhando até a casa dela pra buscar qualquer coisa minha da qual ela queria se livrar. Era agosto. Em Brasília. Isso significa que nessa época do ano faz um calor desgracento e o tempo seco e a baixa umidade não ajudam em absolutamente nada, apenas no pôr-do-sol mais bonito que já vi na vida. Então era agosto, e como é final do período da seca, costuma chover de uma hora pra outra, chuva das fortes mesmo, repentinamente, como ela me deixou, r-e-p-e-n-t-i-n-a-m-e-n-t-e. Então eu ia caminhando quando olhei pro céu e percebi que lá no horizonte ele estava mais carregado que o meu peito (eu disse que tinha virado o rei das metáforas). Ia chover em cinco minutos, no máximo. Vocês conhecem Brasília? Na região central existe apenas um descampado com cerrado seco, sem árvores, sem prédios com marquise, sem absolutamente nada que possa fazer um pobre coitado se abrigar da chuva. A maior parte do tempo eu amo Brasília, mas nessas horas ela me dava um pouco de raiva. Ia cair um temporal e eu estava completamente desabrigado, obviamente sem guarda-chuva, porque ao sair de casa pela manhã estava um sol insano. Eu me sentia a criatura mais tola e infeliz da face da terra, caminhando no sol e depois na chuva só pra ver por dois minutos a mulher que me largou. E muito embora em tempos outros eu conseguisse ver poesia e beleza nisso tudo, nessa hora só um alarme apitava na minha cabeça, como se dissesse que eu estava deixando de fazer sentido.

A chuva chegou antes do previsto (como eu disse, r-e-p-e-n-t-i-n-a-m-e-n-t-e), mas não me pegou. Curiosamente, no exato ponto em que eu estava, não chovia. Como num desenho animado, só que ao contrário. Olhei para o céu, como se pedindo clemência, ou até mesmo agradecendo por não estar encharcado, e vi a metáfora de mim mesmo. Parado ali, com uma nuvem negra ao meu redor, e só havia luz sobre mim.

Talvez eu não tenha entendido direito a coisa. Saí do spot de luz que Deus tinha me dado por breves momentos, como uma epifania bizarra e completamente palpável, e caminhei ainda mais decidido à casa da mulher amada. Obviamente peguei muita água no caminho, porque o spot de luz ficou lá, paradinho, sem me perseguir (no momento achei que isso fosse acontecer, ainda como num desenho animado, sabe como? Só que ao contrário, no desenho animado chove sobre você, e esse não era o caso). Depois de quase meia hora de caminhada e encharcado até os ossos, toquei a campainha do apartamento que era meu, virou nosso e agora era dela. Ela abriu a porta e sequer se dignou a me oferecer uma toalha, só pediu pra eu esperar que ela já voltava com as caixas. Quando voltou, perguntei se ela podia me dar uma carona, porque estava chovendo, ela se desculpou e disse que não podia por estar muito ocupada. Ficou parada à porta me olhando com cara de "por que você ainda não foi embora" quando eu desperdicei toda a epifania que Deus me deu naquele momento anterior, aquela coisa toda da luz e da chuva. Pedi a ela que voltasse pra mim, pelo bem da minha saúde. Prometi a ela que a deixaria respirar, como se eu garantisse que abriria a gaiola pra ela dar uma voltinha e quem sabe fazer as fezes longe do jornalzinho (não disse isso, mas soou como se eu tivesse dito, o que pensei depois ser uma grande estupidez). Prometi que seria o melhor marido do mundo e faria dela a mulher mais feliz e amada da face da terra. Ela só me pediu pra ir embora. Mais nada. Só disse "por favor, vá embora". Joguei a caixa com meus pequenos pertences no chão e a abracei pela cintura, desesperado mas sem chorar, e disse que não sabia o que fazer da vida sem ela. Ela se afastou, foi tudo tão rápido, ela se afastou e o punho cerrado do cara que eu não conhecia e morava com ela atingiu meu nariz com tanta precisão que na hora nem senti dor. Fiquei pensando "Deus, que golpe preciso, será que ele luta?" até cair no chão. Senti o sangue quente escorrer pelo rosto e aí doeu, porra, doeu muito. Ela não se mexeu, ficou lá em pé parada com cara de vaca ainda esperando que eu fosse embora. Eu me levantei, limpei o nariz sangrento na camisa de maneira absolutamente inútil e fui embora com minha caixa com meus pequenos pertences e deixando pingos de sangue pelo corredor.

Quando saí do prédio já não chovia mais e o calor abismal tinha voltado. O sangue secou no meu rosto e coçava. E eu olhei pro céu com raiva de Deus, porque na minha cabeça aquela luz sobre mim indicava que, se eu pedisse com carinho, ela me aceitaria de volta. É, eu não era bom em entender sinais.

Apareci na casa da minha mãe a cara do abandono. Ela se encheu de pena, quis me dar banho, disse que ia matar a vaca e essas coisas que mães falam. Fui pro quarto que ainda era meu, mesmo depois de banido, me joguei na cama e chorei com tanto gosto que até desanuviou o peito. Uns dez minutos depois, minha mãe abriu a porta e disse, toda alegrinha "veja pelo lado positivo, agora você pode participar dos almoços de domingo".

Texto da amiga e romântica Daniela Andrade. Essa mujer escreve demais...

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