domingo, 21 de outubro de 2012

Com todo o amor



Quero-te bem, meu bem
Te amo além
Do que os sonhos fantasiavam
Do que eu sonhava também
Te amo além
Dos meus planos de amar alguém
Amo-te tanto, portanto
E sem porém.

Te amo aqui ou aí, ou ali, além
Em qualquer outro lugar
Amo-te sempre, sem você não sou ninguém
Nem quero ser
Pois você, amor, é o meu lar.

Thaís Carvalho

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Fim


Antes, se você ainda não conhece a saga do nosso herói, clica aquiaqui e aqui,
Depois, pra começar a ler, dá o play.


Me lembro que uma amiga costumava dizer, sobre as dores de amor que às vezes sentia, que não se morria dessas coisas. Foi a primeira coisa que pensei quando finalmente consegui voltar a andar após sair do apartamento dela. Porque eu fiquei suspenso ali por, sei lá, cinco minutos, esperando um chamado que nunca veio. E quando percebi que não veio e quando me dei conta do que viria no lugar, a primeira coisa que pensei foi em não morrer.

Qual o quê.

Talvez tivesse sido mais fácil pra mim se tivessem me dito que a dor de perdê-la me faria doente e meio louco. Talvez tivesse sido mais fácil se tivessem me alertado que parar de trabalhar pra esperar por ela todos os dias durante um mês não ia me fazer mais saudável, nem tampouco a traria de volta. Ninguém me disse isso. Só me davam tapinhas nas costas, riam quando eu dizia que estava à beira da morte e insistiam em dizer que ia passar.

Por um tempo achei que não ia passar nunca e vesti com orgulho minha mortalha. Me transformei em péssima companhia de bar porque estava quase sempre bêbado de dar dó, gritava com casais na rua e fui confundido com um mendigo certa feita em que estava sentado na frente da casa dela esperando ela passar com o noivo – agora já marido – só pra ir pra casa chorar depois. Até que minha mãe, pobre mulher, resolveu que eu tinha ultrapassado todos os limites do aceitável e impôs a condição de eu fazer terapia pra continuar morando na casa dela.

Com o tempo o visual mendigo foi embora, eu parei de frequentar a porta da casa dela, me tornei a companhia de sempre no bar e fui deixando pra lá. Com uns, sei lá, oito meses eu já tava refeito. Voltei a trabalhar, saí da casa da minha mãe e dava festas absolutamente inacreditáveis no meu apartamento.

Era feliz novamente sem amar ninguém.

Até que veio São Paulo. De novo.

E com São Paulo veio a Luísa.

Foi mais ou menos assim: tinha uma reunião do escritório e de lá fomos todos prum bar. E quando eu tava já muito bêbado ela chegou, mais bêbada que eu. Também era arquiteta, tava lá pra encontrar com alguns amigos que, por acaso, trabalhavam no meu escritório. Ela sentou do meu lado e conversamos a noite inteira, sem a necessidade de sermos apresentados. Eu, bêbado, contei toda minha história pra ela, que ouviu com lágrimas nos olhos e se pôs a xingar a ex junto comigo. Já quase amanhecia quando resolvemos ir embora. Disse a ela meu nome, que me disse o seu. Perguntei se ela costumava beber tanto daquele jeito, avisando que se a resposta fosse positiva eu adoraria tê-la como companhia. Ao que ela respondeu que só bebia assim quando o marido viajava, senão ele brigava com ela.

Claro, né.

Mas ficamos amigos. Melhores amigos. Ela tinha sido a primeira pessoa em quem consegui confiar depois do que a ex fez comigo, e isso não facilitava pro amor que teimava em nascer no meu peito. Não lutei, mas não me esforcei pra tirá-lo de lá. Só tentava agir como se ele não existisse, porque eu sabia que se eu dissesse a ela o que sentia, ela certamente se afastaria, por ser boa demais pra me machucar. Então aceitei o posto de melhor amigo feliz, porque era melhor que nada.

Com um ano de São Paulo resolvi me permitir me envolver com alguém, até pra ver se a presença da Luísa no meu peito diminuía um pouco. A moça era bonita, inteligente, gentil e completamente tarada, o que certamente me deixou ocupado por uns meses. E a Luísa sentiu. De início achei que seria somente ciúme normal de amiga quando um amigo começa a se relacionar com outra mulher, e não dei muita bola. Mas as reclamações cresceram e cresceram, e eu não podia falar da moça sem que Luísa soltasse suspiro atrás de suspiro, e percebi que ali era mais do que ciúme de amigo. E me doeu, doeu muito. Ao que me afastei. Ela, percebendo que me perdia, me puxou de volta. E perguntou o que havia. E eu rodeei, rodeei, até dizer que o ciúme dela quase me ofendia, tendo em vista que ela a essa altura já devia saber o quanto eu a amava.

Luísa me olhou como nunca tinha me olhado na vida, o olho cheio de lágrima, o suspiro suspenso. “Eu também te amo”, foi o que ouvi bem baixinho, quase um segredo. Não acreditei, fiquei com raiva, mas ela me puxou pelo braço e disse em voz alta, de maneira que meu peito entendesse bem: “eu também te amo”.

No dia seguinte fiz minhas malas e pedi pra passar um tempo na matriz do escritório. E fui embora sem me despedir. Quando Luísa disse que me amava quase pude ouvir a trilha sonora da minha vida, aquela há muito silenciada, começando a primeira nota. Mas um segundo depois me dei conta de que não poderia ficar com ela, porque veja bem, uma vez uma moça tinha me traído sem que eu tivesse feito absolutamente nada pra ela. E eu quase morri. O marido da Luísa, embora eu não tivesse feito questão de conhecê-lo bem, certamente não o merecia. Então não me cabia fazê-lo.

Passei seis meses sem dar ou ter notícia dela, então achei que seria saudável voltar. E voltei. E uns dias depois do meu retorno, no mesmo bar onde a conheci, um amigo muito bêbado resolveu espalhar a notícia de que eu estava na cidade, e saiu mandando mensagens de texto pra todo mundo. Minutos depois o telefone dele tocou. Era Luísa. Ele confirmou que eu realmente tinha voltado a São Paulo, disse que tinha uns dois dias e disse que eu parecia bem. Ela pediu pra falar comigo. Fiz que não com a cabeça, falei que não queria, que era melhor não. O amigo bêbado insistiu.

__ Alô?

__ Oi.

__ Oi, Luísa. Como você tá?

__ Solteira.

Começa a música. Sobe o letreiro. Fim.

domingo, 23 de setembro de 2012

A estante



“Os prazeres do amor jamais nos serviram. Devemos nos considerar felizes se não nos aborrecerem” me sopra o filósofo Epicuro me ajudando nessa empreitada, após longa jornada de irresponsabilidade textual, de escrever ao blog.
Passemos então a imaginar nossas vidas como uma grande sala branca, rodeada por estantes que ocupam todo o pé direito do espaço da nossa alma. Coloridas, vagas disformes ao estilo Escher em que são ocupadas por qualidades e defeitos de diversos formatos.
“Estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado, quem diz que me entende nunca quis saber” disse Renato Russo ao ficar inconformado com as críticas recebidas diante de sua estante escura, com a pintura manchada pelo tempo e falta de cuidados.
Mas é possível um retoque, diríamos ao mestre do rock que tanto nos compreendeu em forma de letras e cifras. Diríamos ainda que é possível remontar a estante para uma nova análise. Uma mensagem de esperança grudada sobre a mancha, Renato, é tudo o que precisamos!
"Reconhece a queda e não desanima" lembra-nos o próprio Vanzolini no seu samba-aula-canção de vida, nos mostrando que nessa passagem pela vida, são vários os cavalos de Tróia que nos são oferecidos e que a queda é a certeza pelo qual devemos estar sempre preparados.
 “Há males na vida que vem para o bem” nos diz Jorge Aragão, aconselhando- nos a tirar o pó dos livros e Cd’s, nessa estante em construção, deixando-a mais alegre, mas feliz e com um bom espaço para novos postais e cartas de amor.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Cena 03


Leia antes: cena 01 e cena 02

Essa coisa toda de trilha sonora acabou surtindo efeito, mesmo que independente da minha vontade. Dois anos se passaram e nunca mais ouvimos falar do ex-noivo que a abandonou no altar, e se o universo não viesse em meu auxílio eu mesmo tratava de criar uma possibilidade de trilha sonora pra ela. Dava trabalho, às vezes, mas eu sempre conseguia arrancar o sorriso que me transformava em refém. Era feliz com ela. Os dias eram bons. Às vezes ruins, brigávamos muito no estádio, o que me fazia amá-la ainda mais. No escritório também tudo corria da melhor maneira possível, tanto que achava que em breve chegaria um convite pra uma sociedade. Fazia sentido: eu era competente e fazia a filha do chefe feliz.

Até que veio São Paulo.

Foi um pedido especial do pai dela, e eu não podia negar. Mas ao mesmo tempo não queria deixá-la – fazia pouco tempo que morávamos juntos e eu me sentia miseravelmente feliz por acordar e ter aquela mulher na minha cama. Mas era trabalho. Um trabalho a pedido do chefe. Era a minha sociedade acenando, do carro, me perguntando se eu não ia entrar. Entrei.

Os primeiros seis meses foram tranquilos: nos víamos todo final de semana. Quase sempre ela vinha, e eu transformava o aeroporto numa cena clichê de filme de romance só pra ela. E ela adorava, e dizia aos meus amigos paulistanos que era minha musa. E era. Nunca fui um cara de relacionamentos longos, e de repente percebi que queria ficar com ela o resto da vida.

Percebi que queria me casar. Era isso. Na igreja, com a pompa devida, ela no altar me esperando.

Um dia, andando na rua, parei pra olhar a vitrine de uma joalheria e vi o anel. E sabia que ficaria perfeito nela. E sabia que ela adoraria. E comprei. Mas ela não veio nesse fim de semana – ligou na sexta pela manhã dizendo que tinha uma reunião de última hora no escritório e não poderia ir. No final de semana seguinte ela também não pôde ir. E no outro, e no outro, e assim se passaram dois meses sem que a gente se visse. Pensando hoje, nem lembro mais quais eram os motivos da ausência, mas eram coisas tolas a maior parte das vezes. Passíveis de serem contornadas. Me ressenti pela falta de esforço dela, e obviamente responsabilizei minha própria ausência. Então conversei com o chefe e ele me deixou voltar.

Ela não foi me buscar no aeroporto, e quando cheguei em casa ela não estava. Tinha um bilhete dizendo que estava com o pai e não demorava. Ótimo, pensei. Dá tempo de comprar umas flores e velas e sei lá mais o quê pra fazer o pedido. Daí percebi que, muito embora fosse bom na parte da trilha sonora, essas coisas de pedido de casamento eu não sabia como funcionavam. Fiquei horas pesquisando na internet, até que ela chegou. De imediato, senti que havia algo de diferente nela. Me deu um peso no estômago, e na hora eu não soube precisar o porquê. Só senti.

__ Você tá tão diferente – eu disse, depois de um beijo.
__ Impressão sua. É que faz tempo que a gente não se vê.

Mas a sensação permaneceu. E nos dias seguintes, se intensificou. Ela havia mudado. E havia uma gravidade nela, um peso, algo que ela não costumava carregar.

__ Já sei o que aconteceu com você?
__ Como assim?

Ela pareceu alarmada.

__ Seu perfume. Você mudou o perfume.
__ Ah. É verdade.
__ É o perfume que você usava naquele dia que eu te conheci.
__ Deus, você lembra disso?
__ Lembro. Apesar do cheiro da cachaça ter sido bem marcante também.
__ Hum.

Esses “hum” também eram coisa nova. Lembram da gravidade a que me referi? Juntem com ausência e silêncios.

__ Por que você voltou a usar esse perfume?
__ Não sei. Acho que enjoei do outro.
__ Eu preferia o outro. O que eu comprei pra você.
__ Pois é. Eu também gostava muito dele. Mas fiquei com saudade desse aqui.
__ Hum.

Ela sorriu, pela primeira vez em dias. Mas veio diferente, e me feriu.

__ Posso perguntar o que há de errado?
__ Nada. Por quê?
__ Você está diferente. Disse isso assim que te vi e tenho razão. Cadê minha mulher?
__ Besteira, Filipe. São coisas do trabalho.
__ Bom, trabalhamos juntos. Você pode me dizer.

Ela parou com as anotações que fazia e me jogou aquele olhar escrutinador, o mesmo da primeira cena.

__ Amor, meu pai acha que é melhor você procurar outro escritório.
__ O QUÊ?
__ É. É por isso que eu estou assim. Ele me pediu pra dizer isso, mas eu não sabia como.
__ Ele...ele ao menos disse o porquê?
__ Bom...ele acha que não pega bem, visto que temos um relacionamento. Os outros arquitetos reclamam de privilégios e tal. Você pegou a maior conta da empresa.
__ A de São Paulo? A que eu não quis?
__ Amor...
__ Olha...essa eu não vi chegar. Mesmo. Pelo contrário, achei que seu pai me ofereceria sociedade depois de São Paulo.
__ Ai, Filipe. Sei nem o que dizer.
__ Nada. Não precisa dizer nada.

Saí pra beber e voltei já com a madrugada dentro. Ela não estava em casa. Novamente, um bilhete dizendo que tinha ido dormir na casa do pai. Celular desligado.

Enterramos o assunto pelos dias seguintes, e eu decidi propor casamento logo de uma vez, visto que agora nem o trabalho seria problema. Comprei flores (margaridas, as preferidas dela, que odiava rosas) pra casa. Pensei em mandar pro escritório mas ela ia achar brega. Comprei velas mas não acendi nenhuma, pois me passou a impressão de funeral. Só fiquei sentado no sofá esperando ela chegar do trabalho, o anel no bolso esquerdo e a mão pingando suor frio.

Ela chegou com ar cansado e aparência de quem tinha chorado. Eu a abracei e ela chorou ainda mais. Perguntei o que havia e ela voltou a dizer que nada. Pedi a ela que tomasse um banho quente pra relaxar, que depois eu precisaria conversar com ela. O banho durou, sei lá, 326 horas. E ela não saiu relaxada, pelo contrário. Os olhos estavam ainda mais inchados e vermelhos.

__ Filipe, tenho que te dizer uma coisa.
__ Eu também.
__ Por favor, me deixa falar primeiro.

Ela se sentou ao meu lado e segurou minha mão.

__ Por favor não me odeie.
__ O que houve?
__ Ah...por onde eu começo? Filipe, eu sou horrível.
__ Por favor não diga isso. O que aconteceu?
__ Lembra meu ex-noivo?

Imediatamente soltei a mão dela. Em um microssegundo tudo, absolutamente tudo fez sentido.

Ela voltou a chorar e contou que esteve com ele todos os dias nos últimos três meses. Que não sabia como tinha acontecido, mas tinha acontecido e era o que ela queria pra ela. Que foi covarde em não me dizer, que não devia ter se afastado, mas não soube o que fazer. Que eu era uma pessoa muito boa e tinha sido um grande amigo pra ela, mas ele era o amor de sua vida e ela tinha certeza disso. Que pediu ao pai que me afastasse da empresa porque não conseguiria trabalhar comigo depois do que me fez. Falou mais um milhão de coisas que eu simplesmente não ouvi, porque cada palavra me matava um pouco. Só não pediu perdão, nem uma única vez. Minha mão já tinha parado de suar, mas tremia. Ela pedia pra eu olhar pra ela, e eu não conseguia. Tirei a mão do bolso, o porta-jóia molhado de suor.

__ Eu ia te pedir em casamento.

A música começou, como eu tinha programado, e eu não podia suportar. Me levantei e bati a porta atrás de mim. Parei por um segundo no corredor, a respiração suspensa. Pra nada. Ela nunca veio me chamar.


terça-feira, 17 de julho de 2012

Tanto


Quero todo dia
Sua companhia
Ter a sua voz
Ao pé do ouvido
Ter o seu olhar dentro do meu
Esse amor constante vivido
Por você e eu.
Te amo tanto é o que vou dizer
Com os seus dedos entre os meus
Quero acordar e dormir vendo você
E nunca mais ter que dizer adeus.


Thaís Carvalho

Férias de nós


Nada nesse mundo me dá tanto trabalho quanto controlar borboletas destrambelhadas no estômago. Especialmente as nascidas por tua causa, com esse quê de mutantes, sanguessugas, chupa-cabras. Desse modo, só por isso, pelo cansaço de ter de andar na contramão para te acompanhar, correndo riscos demasiados, resolvi tirar férias tranquilas de nós. Devo confessar que também é árduo o trabalho de me conter para não te fazer provar do próprio destempero. Para não me igualar a ti, como se eu pudesse tirar férias de mim, resolvi tirar férias de nós. Mas, tão fatalmente obvio, aonde eu vou, estou. Aonde eu vou, estamos. E, em se tratando de saudade, quando os olhos não veem é que o coração sente. Agora preciso te dizer que não há borboleta no estômago, mutante ou sanguessuga, que resista a azia causada por tua constante acidez. Eu sei, parece mais acertado chutar o balde antes que ele fique cheio demais. Passamos da conta, tudo bem. Quando você passou a dizer "Madalena, quando o stresse é maior que o prazer, não vale a pena" eu percebi que sempre fomos, um para o outro, como aquele sapato lindo que no pé nunca coube, e mesmo fazendo tanto calo a gente resiste em desapegar. Então decidi, pra desanuviar as ideias, que pelo trabalho exacerbado de se manter vivo o que nunca nasceu, precisamos de férias eternas. Férias das brigas. Das reconciliações. Do que somos. Das lamentações pelo que não somos. Das borboletas mutantes. De nós.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Cena 02

Essa série de textos se baseia em sonhos que tive, que acabei condensando numa historinha de amor. A primeira parte você encontra aqui.


Dias depois recebi a ligação do escritório dela marcando uma nova reunião. Obviamente achei que tinha algo estranho, pois a primeira reunião tinha sido marcada por ela, pessoalmente, e fora do escritório. Talvez ela não estivesse à vontade, e provavelmente eu não ficaria também, se assim o fosse. Mas eu precisava do contrato. E tinha pensado nela somente uma vez por dia desde então. Valia a pena tentar.

A reunião foi numa quarta à tarde, e tinha umas quatrocentos e cinquenta pessoas na sala. Não, éramos só nós dois e a secretária, e o pai dela numa videoconferência. Obviamente achei que ela estava evitando ficar a sós comigo, e me fechei em copas. Talvez não quisesse que ela soubesse que pensara nela, ou que o incômodo dela me incomodava. Assim permaneci até o fim da reunião, quando ela me convidou pra um cigarro.

__ Te achei bastante...misterioso hoje.

__ Misterioso? Hahaha...não, estava apenas concentrado.

__ Hum. E como vai tudo?

__ Bem tranquilo. É...como eu me saí? Será que consigo o contrato?

__ Ah, sim. Imagino que sim, deu tudo certo lá dentro. Meu pai pareceu gostar de você. Amanhã a Susi te liga pra dar a resposta.

__ Hum, ok.

__ É...sobre o outro dia...

__ Não, não precisa. Não vamos falar disso não.

__ Mexeu comigo, sabe?

Olhei pra ela surpreso e quase engasguei com a fumaça do cigarro. Eu conseguia ser bem ridículo às vezes.

__ E?

Ela ficou em silêncio por um instante, depois me olhou com um meio sorriso.

__ E eu liguei pro meu noivo no dia seguinte. Sem lágrimas, sem álcool, sabe?

__ E?

__ Daí nos encontramos à noite. Conversamos bastante, foi tudo muito esclarecedor.

__ E?

__ Eu realmente quero tentar isso, sabe? Fazer dar certo com ele.

__ Ah. Ok.

Tentei me concentrar no cigarro pra não demonstrar minha clara decepção com o rumo que a conversa tomara. Ela voltou ao silêncio, olhando pro sol.

__ Bom, eu preciso ir. Posso esperar a ligação da sua secretária pra amanhã?

__ Pode sim, Filipe. Depois nos falamos. Tomar uma cerveja, sei lá.

__ Claro, claro. Até mais.


No dia seguinte a secretária ligou, e de fato o contrato era meu. Pouco depois ela mesma me ligou.

__ Viu? Eu disse que você ia conseguir. Meu pai gostou bastante do seu portfólio.

__ Que bom. Depois que eu saí do escritório tive muita dificuldade pra conseguir novos clientes. Tava até considerando dar aula. Mas é meio frustrante.

__ Não, vai ser ótimo. A Susi te mandou por e-mail alguns documentos, preciso que você dê uma olhada e responda, tá? E se puder mandar algum rascunho pra segunda-feira também...

__ Segunda? É...sabe o que é? Eu sei que acabamos de fechar um contrato e tal, e você agora é minha cliente, mas é que esse final de semana tô de viagem marcada pro Rio. Vou ver a final do campeonato carioca. Tem como adiar esse prazo pra mim até, sei lá, quarta da semana que vem?

__ Final do carioca, é? E você torce pra qual time?

__ Botafogo. Mas não é culpa minha, sabe?

__ Hahahahaha, tudo bem. Você deve ser o único botafoguense com menos de cem anos no mundo. Tá com o ingresso pro jogo comprado já?

__ Sim. É meio que um ritual.

__ Ah, é?

__ Meu pai era botafoguense também. Ele morreu ano passado. Nós nunca nos damos muito bem, mas os domingos eram ótimos. A gente sempre ia junto pro estádio. Ali podíamos ser só pai e filho.

__ Ah...nossa, nem sei o que dizer.

__ Na verdade eu tô brincando. Meu pai tá vivo e torce pro Flamengo. E nos damos muito bem, apesar disso.

__ Nossa, que engraçado. Tudo isso só pra me convencer a te liberar no final de semana?

__ Pois é...peguei pesado, né?

__ Não, tá ok. Acho até que a gente podia se encontrar lá. Eu chego no Rio domingo de manhã.

__ Vai a trabalho?

__ Não, vou ver o Flamengo ser campeão em cima do seu timinho.

__ Claro que você tinha que ser flamenguista.

__ Enfim, só não comprei o ingresso ainda. Me manda o setor que você comprou pra eu comprar perto.

__ Hum...ok.

Fiz um suspense, mas acabei perguntando.

__ Seu noivo vai também?

__ Ah, não. Não, ele não suporta futebol.

__ Ah. Eu chego no Rio na sexta, posso comprar seu ingresso se você quiser.

__ Ok.

__ Por isso perguntei se seu noivo ia, pra saber se seriam dois ingressos.

__ Ah. Entendi.

__ Enfim. Eu preciso desligar, quando chegar me avisa. Vai ficar em hotel?

__ Não, meu pai tem apartamento lá. Eu te ligo. Beijo.

“Seu noivo vai também?” foi, certamente, a pergunta mais estúpida que já fiz na vida.

No domingo ela me ligou cedo, bem cedo. Dez da manhã, pra mim, é bem cedo. Disse que como não podia beber no estádio a gente precisava encher a cara antes, eu mais do que ela tendo em vista que meu time ia perder. Deus, que mulher fantástica. A gente se encontrou na praia, ela de bermuda jeans e camisa do Flamengo, absolutamente linda. Conversamos amenidades, o projeto de arquitetura, o histórico do jogo que veríamos mais tarde, como o sol tava bonito, como o Rio era bonito e ela tinha vontade de morar lá, todas essas besteiras que existem pra gente conversar quando não quer falar sobre o que realmente importa. Eu continuava me encantando, mesmo sabendo que depois de tudo ela voltaria para o noivo e eu continuaria sendo só o arquiteto responsável pelo novo projeto do escritório dela. Não sou do tipo que faz essas coisas, mas tava ali fazendo, e nem sei bem porquê.

O jogo - não vou entrar em detalhes a respeito do jogo em si, porque meu time perdeu – só serviu pra aumentar o estrago. Ela era apaixonada por futebol. E estava completamente bêbada. E ficou lá, com a camisa do Flamengo no meio da torcida rival, gritando, xingando o goleiro – que chegou a fazer um gesto obsceno pra ela – xingando a mãe do juiz e por aí. Era fantástica, absolutamente fantástica. Ao apito final do juiz ela me olhou com o maior sorriso do mundo e me abraçou.

__ Hoje tem festa na favela.

Eu sorri, e voltamos àquele momento anterior, em que ficamos abraçados, ela sorrindo e eu olhando pra ela, e o olhar dela me puxando. E eu sorri também. E ela parou de sorrir de repente, e abaixou a cabeça. Eu soltei o abraço.

__ Tudo bem aí?

__ Sim. Vamos indo? Tem um bar aqui pertinho que é ótimo, cerveja bem gelada e o melhor frango a passarinho do Rio de Janeiro.

__ Sabe, eu vou voltando pro hotel. Amanhã tenho muito trabalho a fazer, preciso descansar.

__ Vai ficar chorando sozinho no quarto só porque seu time perdeu?

Ela voltou a sorrir. E lá fui eu, no sorriso dela.

Saímos do bar era alta madrugada, e dessa vez eu estava tão bêbado quanto ela. Ela jurou que o bar ficava perto do apartamento onde ela estava hospedada e que dava pra ir andando. Falei pra ela que tinha medo de ser assaltado e ela falou que todos os marginais estavam comemorando o título, então não haveria perigo. A cidade ainda soltava fogos pelo jogo.

__ Admiro essa capacidade que você tem de rir de si mesma. Normalmente o pessoal se estressa quando a gente faz esse tipo de brincadeira a respeito da torcida.

__ Bom, posso até ser marginal, mas sou campeã. Né?

Outro sorriso. E eu afundando.

Andamos bastante, até chegarmos numa parquinho caindo aos pedaços. Me sentei no chão e ela no balanço.

__ Sobre o que aconteceu com a gente da outra vez...eu não fui totalmente sincera, sabe?

Tentei fingir que não me importava. Falhei, porque ela continuava lá sorrindo, senhora de mim.

__ Eu realmente liguei pro meu noivo. Nós realmente conversamos. Mas eu não sei se eu quero fazer isso.

__ Isso o quê?

__ Fazer dar certo com ele. Eu pelo menos não devia querer, né? Poxa, ele cancelou o casamento e disse que não queria mais saber de mim. Eu não devia estar atrás disso. Ou devia?

__ Vocês conversaram de novo?

__ Não...falei que ia ligar, mas não liguei. Ele me mandou um e-mail dizendo que ia pra fazenda no fim de semana, que eu podia ir pra gente conversar e ver como ficava, aí eu respondi que vinha pra cá ver o jogo e quando eu percebi a gente tava brigando por e-mail.

__ Hum.

__ Mas nem foi só por isso que eu vim pro Rio.

__ Não?

__ Não.

Um minuto eterno.

__ Meu pai pediu pra eu ficar de olho em você. Ele diz que você é um desses moderninhos metidos a mendigo por conta da barba.

O centésimo sorriso, o tiro de misericórdia. Eu sorri também. Ficamos em silêncio por muito tempo, até que ela se levantou impaciente.

__ Tô esperando a música. Toda vez que eu bebo com você e a gente para numa praça tem trilha sonora. Aí você me beija e eu me sinto uma diva do cinema.

Eu também me levantei, com toda a dificuldade do mundo pra não cair. Ficamos olhando ao redor, de fato procurando a música. E nada. Só o barulho distante dos fogos. Cansei de esperar e dei um passo à frente.

__ Bom, eu posso te beijar assim mesmo.

__ É, eu acho que pode.

E nos beijamos. E os fogos de artifício, aparentemente, ficaram mais próximos, e clareavam a praça, enquanto a gente se beijava. E ela me apertou forte contra ela, e os fogos ali pertinho. E a música começou. E ela me apertou mais forte ainda. Paramos de nos beijar e olhamos ao redor. Nada, só o clarão dos fogos. Ela sorriu e me abraçou. E falou no meu ouvido bem baixinho

__ Isso não é justo. Eu adoro essa música.

__ Peço desculpa pelo atraso. Faltou sincronizar.

__ Mas você ganha pontos extras pelos efeitos especiais.

Me puxou pela mão. Olhei pra ela ainda parado, perguntando pra onde a gente ia.

__ Vem. Vamos nos perder por aí.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

calendário


há um ano você me cortava a alma, em pedacinhos. e eu era só pedaços. partes. fragmentos. há um ano e meio você me surpreendeu com um beijo em um pub qualquer, naquele frio de lascar, envergonhado por estar fazendo algo tão errado - me querer. E eu tive que te deixar enquanto via a banda passar naquela cidade tão longe daqui. há dois anos você me consolava em uma parada de ônibus dizendo que eramos só amigos. há três anos ficamos bêbados em uma piscina qualquer, e eu  te desejei como nunca havia desejado ninguém, mesmo sabendo que você não me queria. há quatro anos você me fazia ficar horas decifrando uma simples mensagem, tentando adivinhar as entrelinhas que não existiam. há cinco anos eu lhe neguei um beijo, lhe neguei um caso, lhe neguei tudo o que queria. só porque não era o correto a se fazer. há sete anos você quis tentar de novo, reviver todos os erros, e eu só queria me divertir por aí. há nove anos anos você me deu meu primeiro beijo e fingimos que a amizade era amor, só porque parecia que estava escrito nas estrelas. hoje você está aqui. segurando a minha mão. vivendo a vida lado a lado.

originalmente postado no meu blog de amores fictícios ou não, Acriando.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Uma verdade






o amor
ALTERA
todos os discursos



ponto. 





sexta-feira, 11 de maio de 2012

Cena 01

Quando a vi pela primeira vez ela caminhava a passos largos de bêbado, numa ruazinha esquecida do Centro, a noite já dentro. Cigarro aceso, garrafa na mão e um riso aberto. Ela olhava pra cima, pro alto dos prédios, procurando sabe deus o quê.

Fui ao seu encontro sem saber como proceder: nos falamos algumas vezes por telefone e e-mail, e sempre no tom profissional do trabalho. Não tinha idéia de como ela se permitira vir bêbada ao meu encontro. Mas fui ter com ela. Chamei-a pelo nome, ela me olhou surpresa.

__ Você quem é?
__ Filipe. Nos falamos hoje cedo por telefone.
__ OOOOOOIII, Filipe. Vai me desculpar. Acabei de ser deixada no altar.
__ Como?
__ Não que eu estivesse no altar dez minutos atrás. Não, mas tava quase lá. Filipe, ia me casar mês que vem. Daí meu noivo achou legal terminar comigo. E ainda me pediu a aliança de volta, vê só, pra empenhar.

E aí eu fazia o quê? Não sabia nem que ela era noiva. Como consolar alguém que não conheço? Era péssimo com essas coisas.

__ Daí, Filipe, daí resolvi beber. Nunca fui muito de beber, mas essa situação merecia um porre, não acha?

Ela passou por mim ainda rindo, o álcool misturado com o perfume dela, e eu fiquei...engraçado. Realmente não sabia o que fazer, então só fiquei ali parado, esperando pelo próximo movimento dela. Ela parou perto de mim, me jogou um olhar escrutinador e, por fim, estendeu a mão pra um cumprimento.

__ Oi, Filipe. Prazer te conhecer. Vai desculpando o mau jeito.

Eu meio que sorri, e fiz um aceno leve de cabeça. Ela devia me achar um idiota, pensei. E depois pensei no porquê de me preocupar com o que ela achava de mim. Mas me preocupei. E não quis parecer idiota. E falhei. O cumprimento não terminou, ela não soltou minha mão, por isso falhei.

__ Filipe, a gente pode deixar nossa reunião de trabalho prum outro dia? Hoje eu quero...
__ O quê?
__ Quero rodar. Vem, vamos rodar.

Descemos de mãos dadas pelas vielas do Centro. Ela ia num passo apressado e eu atrás tentando acompanhar mas sem parecer muito afoito. No passo apressado ela ia me narrando sua tragédia pessoal, de maneira não muito linear, e misturava o sorriso com lágrimas vez em quando. Daí ela parava, sem mais nem menos, se encostava no muro e fazia que não com a cabeça.

__ Posso te levar pra algum lugar?
__ Precisamos de mais bebida antes disso, Filipe. Não sei pra onde você quer me levar, mas sei que lá não tem bebida. E sem bebida não tem negócio hoje, Filipe.
__ Eu entendo. Mas tem algum lugar que você queira que eu te leve?
__ Tem, Filipe. Pior que tem.

Ela me arrastou até a Igreja Matriz. É.

__ Filipe, eu ia casar aqui mês que vem. Agora não vou mais. Ó, tem nem aliança mais no dedo, só a marquinha do sol. Era linda a minha aliança, Filipe. Agora tá empenhada.

Ela fez cara de surpresa, depois guardou um breve silêncio. De cabeça baixa, me perguntou se eu podia ajudá-la a contar pro padre que o casamento tinha sido cancelado.

__ Mas nesse estado? Você acha prudente? Afinal, é um padre, não sei se ele vai gostar de te ver assim.
__ Quem liga? Você liga? Eu não ligo pro que o padreco aí acha: eu fui largada. Se tô bebendo a culpa não é minha, se não tivesse sido largada tava linda em casa pensando nos docinhos da minha festa. Uma hora tava pensando nos docinhos e de repente virei um pudim de cana. E eu não ligo, Filipe. E você parece ser um cara muito bacana, então hoje, por mim, você também não vai ligar.
__ Mas ó, já é noite. Não acha melhor voltar aqui amanhã? Venho com você se você quiser, sem problema algum.
__ E você pretende passar a noite comigo pra vir aqui amanhã? Porque ó, hoje não durmo. Não tem como dormir, Filipe, ou tem? Como eu vou deitar a cabeça no travesseiro sem lembrar daquele desgraçado que me largou com o casamento todo pago? Porque, Filipe, eu não sei se eu te falei, mas tava tudo pago. Meu pai pagou tudo, coitado, até a lua-de-mel pra Fernando de Noronha ele pagou. Meu Deus do céu, Filipe, tenho nem como pagar pro meu pai essas coisas aí. Será que posso cobrar dele?
__ Escuta, vamos deixar a conversa com o padre pra amanhã. Deve ter outra coisa que você queira fazer agora.

Ela fez que sim com a cabeça e voltou a me arrastar pela cidade. Paramos em frente à loja de penhores. Claro. Estava fechada, mas ela não se deu por vencida. Bateu, bateu, bateu. O dono veio ter com ela meio indignado, mas ela chorou litros e ele enfim abriu a porta. Ela me pediu pra aguardar do lado de fora e entrou sozinha. Cinco minutos depois, veio ter comigo.

__ Você tem quinhentos reais aí? O infeliz empenhou minha aliança por essa mixaria. Não dá pra acreditar que eu ia casar com esse cara.
__ Tenho não.
__ Você pode ir no banco sacar?
__ Também não tenho no banco não.

Nem se tivesse, ela resmungou. Voltou pra loja e saiu um minutinho depois, brava, bem brava. O dono não quis devolver a aliança sem receber o valor do empenho. Não adiantou nem contar sua tragédia pessoal.

Seguimos andando pela cidade, parando ocasionalmente pra comprar bebida. Ela entornava vorazmente uma garrafa de pinga, da branca, a pior. Eu bebia uma cervejinha. Conversamos um pouco sobre ela, as coisas que ela fazia, as coisas que ela gostava, e a cada minuto eu gostava mais dela. E não conseguia vislumbrar um motivo sequer pra uma mulher como ela ser deixada. Tentei verbalizar isso, certamente a faria se sentir melhor, mas preferi não falar nada.

Já devia passar da meia-noite, já havíamos andado por horas. Paramos na praça, eu me sentei, ela ficou em pé, falando sozinha. Do nada a música começou a tocar. Era uma música antiga, me lembro de ouvir quando criança, meu pai escutava muito em vinil. Começou a tocar mas nem eu nem ela pudemos precisar de onde vinha: não havia uma luz acesa em nenhum prédio, nem carro passando, nada. E a música vinha alta e clara, tão perto da gente, e ao mesmo tempo de lugar nenhum. Ela parou, encantada. Sorriu, encantada. Eu olhei pra ela, encantado.

__ Parece que temos trilha sonora, Filipe.

Ela rodou, e rodou, e rodou. E aí parou e me encarou, as lágrimas escorrendo fartas. Eu a puxei pra perto e a beijei. Ela não resistiu. Nos beijamos longamente, e a música não terminava, e ela amoleceu no meu braço. Findo o beijo ela voltou a me olhar, e me puxava com o olhar pra ela. A música continuava, e eu a olhei por longos minutos, uma eternidade. Sorri. Ela sorriu também.

__ Me senti num filme, Filipe. Isso não é coisa que se faça.

 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Mendigos, poetas e seus amores


Porque a gente se apaixona pela vida, pela pessoa... e pela cidade também

É no Viaduto do Santa Tereza que meus joelhos tremem. Aqui embaixo vão os mendigos, enquanto que os poetas passam lá em cima - embora haja casos de completa indistinção entre seres e caminhos. Me contaram, afinal, que era por onde Drummond e tantos outros caminhavam madrugada adentro, imersos em boemia e solidão. Lembro disso e apresso o passo como em poesia. É preciso estar atento ao que pode te tomar de assalto. Certa vez, alguém disse: “ela passa por aqui todos os dias”. Tremi. Morri. E suspeitei ser tempo de mudar o trajeto e, assim, a história quase inteira. Em cada esquina, há policiais distraídos e eles me parecem um tanto quanto vulgares.

Viaduto Santa Tereza – construído em 1929 – os mais inspirados e aventureiros escalam os arcos

Avistei um garoto que, como eu, levava cor nos cabelos e duvidava da vida: não sabia o que era falso, verso ou devaneio. “O que há de tão poético nessas Minas?” - Eu não cansava de me perguntar. Foi já na Estação Central do metrô que uma Sra. Gari, meio translúcida de cansaço, meio feliz de cachaça, avistou o trem (o trem de verdade), de longe, e disse: “Lá vem o bichão! Pode correr gente! Olha isso, de tão feio, é bonito!”.

Me despertou um sorriso convincente: essas são as Gerais, onde se é apaixonado pela simplicidade e leveza da vida, e a coincidência é um encontro com o cotidiano que facilmente vira verso. Eis o segredo da crônica. Mais de 20 milhões de pessoas por entre as mais de 800 cidades, seus queijos, cachaças, doces de goiaba, miniaturas em pedra-sabão, tantos nomes de santo e um histórico inteiro de romances indecifráveis.

Gameleira: onde Rio Branco nasceu; e meu destino é acordar

Por estas Minas Gerais se vai em silêncio tranquilo, por algo que preenche o peito; se volta por algo que sufoca e não cabe mais. BH, afinal, é dona da grandeza que atrai e amedronta sua vizinhança. Em alguns casos, gera conflito e inveja, só por conta de sua completude e autonomia - como num amor não correspondido. E só quando brinquei de poeta e rabisquei estas linhas, que me dei conta que meu destino diário é a Estação Gameleira, aquela de mesmo nome da árvore da curva do rio, d’onde Rio Branco nasceu, lá no Acre. Viu só?

Encontro e saúdo Paulo Mendes Campos, aquele cronista que diz que “o amor acaba”, e sou obrigada a concordar, porque ele também sabe que o amor recomeça, em qualquer esquina, diante de qualquer sorvete, espetáculo de dança, canção do Milton Nascimento ou ipê amarelo da Praça da Liberdade.

Praça da Liberdade: onde é justa toda forma de amor, bem como guerra de travesseiros, espetáculos de beijos, lágrimas civis e um jardim que perfuma longe

Mas o que eu queria, o que eu queria mesmo, era compreender estes olhares, ser poeta e ordenar algumas frases que expressassem bem o fato de que, naquele dia, embora houvesse sol, caqui e tempo, faltava alguém que deixasse as mãos firmes, ajudasse a ocupar o banco vazio e ouvisse o chamado (acreano) que diz: “cuida...”. E me dou conta da sensação de que tudo só pode ser somente quase perfeito.

Ítalo Calvino não é mineiro, mas talvez pudesse ser; foi ele quem ensinou, pois, que “de uma cidade, não aproveitamos suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas”. A cidade, penso eu, é o que cada um é como indivíduo, e se torna o que você está disposto a ser ou a questionar. Belo Horizonte foi uma ilha. Agora é constelação que compõe um Cruzeiro do Sul e me sinaliza: “avante!”.  


ps: fotos encontradas pela internet, sem autoria informada




sexta-feira, 4 de maio de 2012

Mórbido*


Depois de mais de uma hora esperando o ônibus, que só passava lotado, resolvi encarar a multidão enlatada e me juntar a aquele sacrifício. Na entrada um senhor meio cego pisa no meu pé e nem pede desculpas. Eu peço. O cartão de passe livre que nem sempre é fácil resolve se calar em seus códigos chipados e sou obrigado a tirar da carteira os últimos reais que guardava para um lanche rápido que faria ao invés de um prato de feijão com arroz e salada costumeiro. O dia já começava me dando pistas de que seria daqueles em que só não temos ataques de fúrias por saber que existem policiais muito mais violentos que qualquer surto. Melhor me espremer de algum jeito e, pelo menos, ouvir um rock no aparelhinho de mp3 escondido no fundo da mochila e que levo horas pra encontrar e, mesmo assim, a bateria acaba antes da primeira música. Pelo menos a paisagem do lago e da esplanada vai me tirar a atenção, mas as comemorações do aniversário da cidade faz aquelas paisagens ficarem turvas e sem graça. Tomara que a rodoviário chegue logo, pois este baú não parece que está indo pra lá. No aperto da saída o empurra me faz cambalear e derrubar a mochila onde, bem guardado e protegido, está o meu tablet novinho comprado em 24 prestações no cartão de crédito. Quebrou. Pensei logo dando uma forcinha a mais para o mau agouro que parecia ter me acordado e me seguido durante o inicio daquela manhã. Só um arranhão, mesmo com toda aquela proteção de plástico bolhas. Um cafezinho, certamente, me fará esquecer estas mazelas de cidade grande. E aquele cigarrinho depois, esquecendo claro da minha asma, para tentar escurecer os sentimentos tanto quanto ao pulmão. Porra de isqueiro que não funciona. Ela me chama pelo nome e eu nem sabia que ela sabia o meu nome. Queria também acender o cigarro. Porra de isqueiro que não funciona. Tento puxar uma conversa sobre estes pequenos importados que nos deixam na mão e ela simplesmente me diz que não tem problemas e vai embora. Mais na frente ela vira-se e me sorri, e me manda um beijinho de ponta de dedos. Pra quê isqueiro? Minhas esperanças acenderam e eu tenho a tímida sensação de que ganhei o dia. Mas ela vai embora sem mais e deixa aquela pequena chama ardendo. É o combustível que preciso pra passar mais um dia na solidão mórbida desta cidade.

*Texto de autoria de Silvio Margarido, diretamente de Brasília, publicado originalmente em seu blog, O Reino da Entonação.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Do fim ao começo


Era uma vez... Assim como eram todas as vezes. Madrugada, você deitada na cama encarando o relógio no criado mudo. Eu chutava a porta, depois de tentar, sem sucesso, meter a chave no buraco da fechadura. “Calma, cacete. Já vou abrir”, lá vinha você, bodejando sei lá mais o quê, que de tão bêbado nunca lembrei.

Todas as vezes que eu me via preferir a mesa de bar a tua companhia, lembrava de quando largara meu mundo pelas tuas vontades. Tu querias sair do sítio. E lá fomos nós, jurando amor eterno, prometendo estudar, trabalhar, ter filhos, casar. Não necessariamente nessa ordem.

Nossos planos de amores feitos ao lado dos pés de amora, em cima dos jambeiros e ingazeiros, aos poucos se desfaziam no segundo andar do nosso prédio, onde as paredes me sufocavam. A rotina também. A cidade te tirou aquele ar de menina do campo, Soraia. Flores no cabelo, cara limpa, vestimentas singelas... Teus cachos, que eu tanto amava, você esticou. Tuas unhas agora combinavam com a boca vermelha. Até teu cheiro deixou de ser teu (e meu). 

Depois de meses de bebedeira continua pra fugir de nós, você já tinha aprendido. Com gente bêbada não se discute. E me deixava soltar os cachorros, despejar as cobras, os lagartos, enquanto você engolia os sapos, rãs e cururus. Engolia com maestria. Até um dia vomita-los todos na minha cara, enquanto dizia que engolir era fácil, difícil era digerir. E me mandou ir embora, sem saber que eu já planejava ir. Mas essa parte só veio agora porque eu comecei pelo final.

Até porque, diz o clichê, no começo tudo são flores. E nós éramos orquídeas crescendo sobre as árvores, em busca de sol. E brincávamos de esconde-esconde, corríamos pelo sítio, pulávamos pelados no açude, ríamos das piabas taradas mordiscando nossas coisas. Coisas estas, que descobrimos juntos.

A cerca que separava nossas terras tinha uma pequena falha. A falha mais certa de nossas vidas. Os dois faltosos pedaços de madeira que me permitiram adentrar teus lados em busca de uma pipa qualquer. Enquanto você, arengueira, ameaçava não devolver. “Eu que aparei, ela é minha”, gritava. E eu te mandei ir atrás das tuas bonecas, costurar roupinhas e me deixar em paz, com minhas coisas de menino.

Você dava de ombros. Dava língua. Mostrava o dedo do meio. Tinhosa, como sempre foi, batia o pé no chão e dizia não. E eu te odiei. Odiei por ter me feito, a partir dali, esquecer a pipa e as demais coisas de menino. Mas antes, corri atrás de ti, até cairmos no chão, nos atracando numa briga digna de filhotes de cães. A pipa já não tinha mais papel de seda, teus cachos enfeitados com folhas secas e você, ofegante, pedia trégua.

Deitamos lado a lado no chão. Tomamos minutos de fôlego em silêncio, até você quebra-lo com um riso baixo, que foi aumentando e aumentando devagar até se transformar na melhor das gargalhadas já registradas por minha memória auditiva. “Ta rindo de quê, em, menina velha?”. “To rindo da tua pipa, que ta só o bagaço. Nem tu nem eu vamos poder brincar”.

Eu lembro, Soraia. Eu lembro que foi assim. Lembro até do teu primeiro abraço demorado, quando terminei de consertar a escada da tua casa na árvore. Três degraus soltos, doze pregos, um martelo, um erro a cada cinco marteladas e um beijo no meu rosto a cada dedo machucado, pra aliviar a dor. Lembro que foi ali, naquela casa, que descobri teu corpo, o cheiro da tua nuca, teus beijos, tuas primeiras taras.

Foi assim.  Te escrevo em resposta aquela carta sem cabimento pra te dizer que não. É claro que eu não esqueci. Te contei de rabo a cabo, de trás pra frente como nossa história se deu porque, ao relembrar, eu sempre preferi terminar pelo início e começar pelo fim.

Beijos.

Jairo

pequeno grande monstro





- Precisei entorpecer minha saudade pra sobreviver os dias sem a tua presença. Precisei me convencer que a sua falta não era tão importante. Que não me custava a ausência dos teus beijos ou do toque da sua mão. Foi necessário repetir infinitamente que podia viver sem lembrar o teu cheiro. Mas mentia como nunca pensei que seria possível, ate para mim, que sou especialista em inventar mentiras internas para acalmar a minha alma. Eu me importava. A tua falta me matava. Todos os dias, lentamente. E agora que vou lhe ver, que o tempo decidiu ser nosso aliado e fazer os dias nos calendários ate o nosso encontro diminuírem, o pequeno monstro da saudade acordou. E se alimenta de tudo que lembre você. O problema, Moreno, é que tudo faz referência a você.
- Dizem que pessoas apaixonadas encontram o amor ate em uma folha de árvore caída  no chão, talvez seja esse o seu problema Pequena.
- O meu problema é que aqui não me faltam árvores. Quem mandou morar bem no meio da Amazônia?  Só sei que eu te quero Moreno. E sinceramente não me importa que o tempo seja nosso inimigo, e que nossos dias estejam contados. Aproveito cada hora. Todas as 72.  O pequeno monstro que existe aqui dentro já acordou, e eu preciso alimenta-lo um pouco pra que ele possa voltar a hibernar. O problema  é que ele sempre deixa uma bagunça depois que vai dormir. E no final do dia, tenho que ficar juntando os meus cacos pelo chão. 

quarta-feira, 18 de abril de 2012

No meio de tanta gente chata, eu encontrei você

Parece música da Marisa Monte, mas é a nossa história. Foi no meio daquela multidão que eu te vi. Estava com aquela blusa verde que nunca mais você usou e beijava um amigo meu. Fingi que não tinha percebido e te puxei pelo braço, tirando você da roda de amigos em que se encontrava e roubei um beijo enquanto as pessoas pulavam a nossa volta. Você ficou assustada e por um minuto pensei que fosse me dar um tapa na cara, e acho que cogitou isso, mas no final retribuiu. Retribuiu com gosto. No fundo musical nada de sinos, tocava um daqueles axés chatos de carnaval. Eu perguntei seu nome, mas não consegui entender direito. Era Carolina ou Carminha? E quando vi, você já tinha sumido no meio da multidão. Virei as costas, achando que nunca mais iria te ver. Quem diria que dois anos depois, estaríamos deitados nessa varanda construindo nossa vida juntos. Bem assim, lado a lado. Mas essa já é outra música.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Os homens que não tinham medo de amar as mulheres




Fiz um trocadalho do carilho (crédito da expressão ao mestre amigo Marcos Vinicius) com o nome do filme “Os homens que não amavam as mulheres” do grande David Fincher.

Rapaz, mas vocês são muito bestas mesmo. Esperto é o meu amigo André, que mal se achamegou com a sua digníssima e já saiu distribuindo, para quem quisesse e para quem não tivesse nem aí, a alegria de ter encontrado a sua metade da maçã. Bem aventurado o cabra, pois não tem vergonha de mandar essa ditadura dos relacionamentos pedra de gelo pro escambal.

Culpa dessas Marie Clarie, VIP, Alpha, Cláudia e o – me perdoem a agressividade – carajo a quatro de revistas que se atrevem a ensinar pros ingênuos como se portar com o cônjuge.

Que fuleiragem!

Mania sem cabimento de dizer que demonstrar afeto é coisa dos fracos. Olhe, tô pra ver sujeito mais valente que meu comparsa de confraria Ulisses. O bicho não quis nem saber e tascou uma homenagem para sua Clara aqui no blog. Queria ser assim, ó.

Admito que não me jogo tanto quanto os chegados que citei aqui. Não é falta de vontade, mas uma questão de jeito mesmo. Pero, bato palmas. São meus heróis.

Um bom namorado deve ser cachorro. Deve aderir aos apelidos carinhosos. Precisa fazer um cafuné 0800. Carece cantar a companheira de dias, meses, anos ou encarnações.

Não custa ressaltar a saudade que sente. Macho sente falta da mulher sim. Vai sentir do quê?

Escrevo para alertar dos perigos escondidos por trás da imagem do cidadão inabalável. Não confie num homem que não se proporciona momentos de dores cotovelais após um pontapé da parceira. Esse hombre é doido ou imbecil.

Sou explosivo no carinho e no carão. Já chorei e já pedi perdão. Me declaro e tento ser original no agrado. Digo que amo e amo do vera. Insisto pra voltar e confesso saudade. Se usted não tem peito pra isso, amigo, estás lascado. Só um sujeito cafajeste é capaz de ser cachorro pra sua mulher sem timidez alguma.

A minha arenga é pelo respeito que devemos aos que se admitem cachorros. Não precisa ser bonachão, daqueles que perturbam a paz da moça. Mas não custa nada fazer uns bons cariños, daqueles que só faz quem ama.

Feliz mesmo era o Sinhorzinho Malta com sua Porcina e mais ninguém!

domingo, 15 de abril de 2012

Assinado eu

Às vezes, em alguns contextos, situações e cenários não conseguimos transcrever, traduzir ou achar o tom para diluir o que há por dentro. Mas aí, vem o artista e essa coisa toda que chamam arte, música e poesia, e torna tudo mais leve e delicado, encurta caminho e, de quebra, adiciona trilha e ritmo. Divido cá com vocês um clipe que, embora sem muito auê, está repleto de sentidos e permite viajar um pouquinho sobre essa coisa que chamam sentimento. Pode até não parecer, mas este post é, sobretudo, uma breve declaração de amor à arte que se dedica, exatamente, a isto.

Com vocês: Assinado eu - Tiê 



sábado, 10 de março de 2012

O elogio do tarado



Toda mulher quer, precisa e merece uma boa dose de taradice 0800 do seu compañero. É o olhar canalha que se dá ao desabotoar o sutiã com destreza, é a imoralidade dita no pé d’ouvido, é a mordiscada dadas nos bicos e juntas da fêmea, é o vap-vap sem pudor. Não fazemos mais que nosso dever cívico/cínico.

Sim, falo de cinismo ao se convidar para um sorvete geladíssimo com as intenções de, no final, convencer a querida a esquentar la vida y corazón. Toda dama – não, como diria Nelson Rodrigues, ‘só as normais’ – almeja roçadas na nuca, beijos com olhos fechados, dentadas egoístas, mãos hermeticamente encaixadas nos quadris.

O cabra macho joxó valoriza o gosto que lambuza a boca e infesta as narinas. Não tem a frescura do ‘isso aqui é ruim’. Pena dá daquelas donzelas que não assumem sua predileção pela sem-vergonhice a quatro paredes. Das pervertidas enrustidas. Daquelas que travam com pensamos do tipo ‘onde ele aprendeu isso?’.

Por outro lado, de nada adianta o brucutu cuspir macheza no boteco da esquina e se borrar nas calças se a mulher aparece com algum aparato sexyshopiano no momento do coito. Propaganda falsa. Procon no patife, minha senhora!

Sou tarado, sou canalha, tenho cara de safado e sou bom nisso. Tenho minha mulher ideal e sigo as indicações do mestre Chico Buarque sobre a profana: “Ela gosta do tango, do dengo, do mengo, domingo e de cócega. Ela pega e me pisca, belisca, petisca, me arrisca e me enrosca”. Valeu pela dica, Jorge Maravilha.

terça-feira, 6 de março de 2012

Carta aberta a Ovídio


Ressuscitem imediatamente Públio Ovídio Naso, escritor romano que viveu entre a segunda metade do I século a.C e do século I d.C, para que complete sua obra inacabada.

Em “A Arte de Amar”, Naso compra a briga com o cupido e jura que pode derrotar o efeito desastroso do amor. “Venham às minhas aulas, jovens enganados a quem o amor só trouxe decepções. O mesmo que vos ensinou a amar vos ensinará como vos curardes” promete o político das causas impossíveis há 2012 anos.

Diria ao poeta-curandeiro que, mesmo diante de tantas dicas valiosas, foi incompetente diante do principal mal da separação: o domingo. Provavelmente naquele tempo não existiam Faustões e outras drogas depressivas, mas esquecer do principal efeito colateral do pós-romance é imperdoável.

Mas onde quer que esteja Nasão, nesse momento, digo-vos em verdade: Ovídio, quando disseste “Elimina a ociosidade: é ela que impele as setas de Cupido” não tinha a real noção do que é um domingo na vida dos amantes. É justamente da ociosidade compartilhada que os amantes sentem falta, Naso! Não adianta nos ocuparmos com trabalho, pois o corpo pedirá um almoço às 3h da tarde na churrascaria preferida ou tacacá do fim de tarde.

Poderá dizer que ao usar esse argumento deixei de lado o descanso sabático. Engana-se! A ociosidade do sábado é facilmente driblada pelo futebol e pela cerveja com os amigos, pelas religiosas faxinas ou as compras do mês. Ademais, o sábado não usa as algemas de ser um dia pré-segunda-feira, como é o caso do dramático domingo.

Pouco adianta “fazer longas viagens e fugir para muito longe” se, independente do lugar, os amantes precisam passar pelo sofrimento dominical e outros fantásticos shows da vida. Como pode Nasão, dizer que para se livrar do sofrimento, “O uso de feitiços é condenável” se temos um dia na semana tão cheio de ocultismo, como é o caso do Sunday e seus filmes com Charles Bronson no domingo maior.

Por fim, Ovídio, é muito fácil dizer que “A melhor maneira de ter de volta tua liberdade é romper as cadeias que ferem o coração” em uma segunda-feira com muito trabalho por fazer onde tudo volta ao normal, às mais tradicionais e previsíveis rotinas, ansiosas pelo próximo domingo temeroso, onde tudo se acaba para recomeçar.

Do homem na ilha

Me lembro perfeitamente de como vim parar aqui, apesar de tanta poeira que já vi passar, de tanta poeira a comer o melhor dos dias. Os barcos passam e não param mais. Certa feita um senhor veio me buscar e disse que eu devia ir, mas eu não queria. Preferia ficar aqui sozinho. Esse mesmo senhor quis saber o porquê. Eu disse que ia esperar ela voltar.
Conheci essa mulher e no mesmo dia me apaixonei. E logo depois de me apaixonar por ela, ela se apaixonou por mim e aconteceu de ficarmos juntos. Divina Providência. Ficamos juntos e éramos delirantemente felizes. Daí ela teve a ideia de vir pra cá, pra essa ilha, pra construir um mundo nosso, um mundo onde só a gente acontecesse de existir e só a gente daria conta da gente. Tinha um barco, me lembro sim que tinha um barco, uma pequena embarcação tosca de madeira, que ficava atracado na ilha pra quando a gente precisasse ir ao continente. Me lembro que a primeira vez que pisei na ilha me assustei porque não conseguia ver o continente. Me lembro que ela disse que era só questão de acostumar, que já que eu estava ali eu tinha que viver aquilo ali. Me lembro que disse a ela que abriria mão de toda uma vida pra ficar lá, se ela pudesse me garantir que ficaria lá comigo pra sempre. Me lembro que ela sorriu e disse que era pra sempre, que não tinha outro jeito de ser. Me lembro que quando chegamos ela mesma cuidou da casa, de todos os detalhes, e sempre ia ao continente pra buscar o que fosse preciso. E vivemos felizes aqui, por anos e anos. Até que um dia ela cansou, eu acho. Disse que queria voltar pra ilha. Daí eu disse a ela que não tinha como, que seríamos como estranhos lá fora porque já éramos tão um do outro que não havia a mínima possibilidade de ser de mais ninguém. Que ninguém mais lembraria de mim porque eu tinha deixado tudo pra trás sem nem avisar, que eu tinha simplesmente ido e não tinha como voltar. Me lembro que chorei pedindo pra ela não fazer pouco do meu gesto. Mas ela insistiu. Então combinamos que ela poderia passar uns dias no continente, pra matar a saudade do que quer que fosse, e depois voltaria sem remorso de ter deixado tudo aquilo pra trás. Quer dizer, era o que aconteceria comigo caso eu quisesse ir embora da ilha: ao botar os pés no continente, ia perceber que o meu lugar no mundo era o peito onde ela me abrigava nas noites de tormenta e não teria sentido em insistir nisso. Porque há anos eu tinha saído do continente sem olhar pra trás e não saberia reconhecê-lo, nem conseguiria encará-lo de frente. Eu acreditei nisso. E pedi pra ela lembrar disso quando lá estivesse, e pedi pra ela lembrar de quantas noites pedi pra voltar e ela me abraçava e dizia “não tem necessidade de voltar porque é aqui nosso lugar, é aqui que somos de verdade e é aqui que vamos ficar pra sempre”. Ela prometeu que ia lembrar. E entrou no barco e partiu. Foi pro continente e dias após voltou, e pareceu mais disposta, e pareceu verdadeiramente feliz em estar ali pra sempre. E eu agradeci por ela não ter me deixado ir quando eu quis, porque senão eu findaria sem ela e sem luz pros meus dias. Mas eu a via chorar à noite, e não sabia que a saudade do continente tinha apertado tanto. Fiquei triste por ela, e claro que a única solução seria queimar o barco. Se voltar ao continente tinha feito mal a ela, não voltaríamos nunca mais. Queimei o barco. Tinha ouvido isso numa canção e achei extremamente poético. Então queimei o barco. Ela chorou dias e dias seguidos, disse que queria a vida dela de volta. E eu só conseguia dizer “fiz isso por você”. Ela não ouvia, ela se olhava no espelho e dizia que não se reconhecia, ela me olhava e dizia que não me amava mais. Que eu a sufocava naquela ilha. Que era egoísmo meu ter queimado o barco. Eu chorava e repetia “fiz isso por você, fiz isso por nós, porque eu acreditava na gente”. Ela não ouvia. E não me abraçava mais, e quando me beijava era tão fria que doía. E eu repetia “foi por você, só por você”.
Me lembro que isso durou uns meses, não sei precisar quanto tempo, mas pareceu uma eternidade. E um dia eu acordei e ela não estava. Corri pra praia e a vi no mar, nadando em direção a uma embarcação que passava próxima. A primeira embarcação que vi passar em anos. A primeira embarcação e ela partiu. Da praia eu a vi ser resgatada pelos tripulantes do navio e não olhar uma única vez pra trás, assim como fiz anos antes, assim como quando deixei o continente pra viver naquela ilha com ela. Deus, ela não olhou pra trás por um segundo sequer. E partiu.
No início ela mandava cartas em garrafas, coisa mais ridícula. Dizia que sofria também, mas que precisava seguir, viver novas coisas, que eu fazia mal pra ela. Depois o tom das cartas foi mudando, ela dizia que eu precisava sair dessa loucura e me tratar, que eu era doente e que ela não viveria comigo nunca mais. Por fim, ela mandou uma carta seca dizendo que não podia mais fazer nada por mim, e junto à carta uma foto dela com um rapaz que ela conhecera na última visita ao continente antes de me deixar.
E eu fui ficando por aqui, fui fincando por aqui. Desaprendi a linguagem que as pessoas usam pra se comunicar umas com as outras. Desacreditei no ser humano e em qualquer forma de amor. Fui ficando aqui, náufrago das promessas que ela me fez, náufrago do cheiro que ela tinha na nuca. Não tinha porque voltar ao continente – as promessas dela nunca se realizariam, o cheiro da nuca dela nunca voltaria a ser meu. Mas, lá no fundo, nunca fui embora porque achei mesmo que um dia ela voltaria. Nem que fosse pra tripudiar, ou sentir pena, ou até quem sabe me salvar. Mas ela me esqueceu. Ela seguiu com a vida e eu chorei até secar, e eu pedi a Deus que fosse piedoso e me levasse, mas quanto mais eu pedia menos ele me ouvia. Porque eu zombei dele um dia, e dos sinais, e ignorei tudo. Deixei tudo pra ter nada. Pra ser nada.
E agora voltar parece despropositado. Surreal. Sou o espectro infeliz do que fui um dia. Porque um dia fui inteiro, mas dei tudo de mim pra ela. A parte humana que tinha em mim morreu junto com a lembrança dela.

"Quem pagará o enterro e as flores se eu me morrer de amores?"