segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Old Love


Ela acordou naquela manhã fria e imediatamente quis dormir de novo. Tivera uma noite terrível, e o ritmo preguiçoso do feriado junto do final de semana não ajudaria na tarefa de começar a semana.

Era a semana de aniversário. Ela não era grande fã de aniversário, tanto por não se sentir mais sábia ao longo dos anos quanto pela perda do primeiro amor em uma de suas vésperas. O aniversário era basicamente o fim do inferno astral, nada digno de nota, e ela preferia encarar assim.

Por ser segunda ela já sabia que seria um dia inevitavelmente ruim, mas aquela era uma segunda diferente, e ela soube no momento em que tentou se levantar da cama, pois havia um peso novo dentro dela, no fundo da garganta. Uma coisa assim antiga, mofada, morta. Ou que ela pensava estar morta, pois estava ali bem viva dificultando a respiração. Tentou entender o que acontecia e seu corpo todo enrijeceu de medo. Lembrou com clareza da última vez que se sentira assim, e já fazia tantos anos que não parecia possível. Tanta água já tinha corrido, de uma correnteza tão violenta, que ela tinha certeza de que o menor fragmento restante tinha sido levado junto com tantas outras dores. Mas não, ela sabia que não. Estava ali, viva e cristalina, a saudade de um amor morto.

Morto. Mas um dos amores mais bonitos que ela viveu, ali pelo início da década passada (deus, que história antiga! - ela repetia pra si mesma). Namoraram por quase dois anos, um amor fresco, cheio de brisa, cheio de descoberta. Antes de namorados eram melhores amigos, e conheciam tão intimamente um do outro que era praticamente impossível que errassem. Ela lembrou desse detalhe com um certo pesar – o relacionamento posterior durou quase o dobro, mas deve ter tido metade da felicidade e uma quantidade infinitamente maior de lágrima e dor.

Ela tinha seus 19 e ele já 32 anos. Vinha apaixonada por ele há alguns meses, mas não sabia se era recíproco e não quis arriscar, afinal ele era seu melhor amigo. E era desses caras assim, facilmente apaixonáveis: bonito – de olhos escandalosamente verdes, inteligente, sensível, educado, simpático à causa feminista (o que já era deveras importante pra ela à época). Pilotava uma moto da cor preferida dela, era músico e jogava xadrez. Quando ele a pediu em namoro ela tinha a absoluta certeza de que ali era o início do fim dela, e que o fim dela era ele. Não queriam filhos, não queriam casamento, queriam morar fora do país e amavam cachorros. E eram completamente tarados um pelo outro – chegaram a ser indiscretos em algumas ocasiões sociais, mas era um cio interminável. Faziam sexo o tempo todo, conversavam sobre tudo o tempo todo, ouviam Beatles todos os dias, bebiam feito loucos e foram felizes feito loucos, o tempo todo. Nada com ele era difícil – nem a relação conflituosa que ela tinha com a família, nem a morte prematura e traumática do primeiro amor dela, nada era um obstáculo, nada era um enigma. Viveram uma relação tão madura pra idade dela, sem grandes brigas, sem grandes percalços, baseada numa confiança sem reservas e num amor que só crescia, que por vezes ela custava a acreditar que era real. E quando ela duvidava ele fazia questão de transformar a dúvida numa realidade tão palpável, tão intensa e desejável, que ela se sentia grata pela certeza que ele plantava no coração dela.

Até que ele mudou. De uma hora pra outra, sem motivo aparente, ele mudou. Quase não conversavam mais, ele estava ausente a maior parte do tempo, o sexo esfriou, ele simplesmente mudou. Não durou um mês, mas ela não quis esperar. Não quis pagar pra ver. Se achava tão madura, tão especial, tão auto-suficiente, que não tinha porque esperar por ele voltar. Ou batalhar para tê-lo de volta (se ela pudesse imaginar do que seria capaz mais à frente...). Tentou conversar uma vez, se muito, e como não obteve resposta, simplesmente resolveu partir.

A partir daí, tudo que era absolutamente especial entre eles adquiriu um aspecto turvo, e chegou ao ponto de parecer que sequer se conheciam. Meses depois ele a encarou e disse que havia errado, que tinha cometido esse erro e que esse erro foi responsável por fazê-lo mudar, porque ele não tinha condições de encará-la, não tendo feito o que fez. Mas que ele sabia de quem era a culpa pelo fim, e estaria disposto a carregá-la por quanto tempo fosse preciso, porque ele sabia o que esse erro custaria, e era um preço muito alto a se pagar. Ela ouviu num misto de alívio e ódio, pois se arrependera de ter partido sem lutar, mas por ouvir sem ouvir de verdade ela só maximizou esse erro pra se livrar da culpa. Ela, menina que se achava mulher, não soube perdoar. E desde então eles nunca mais conversaram como antes, e brigaram como nunca, e se perderam completamente no processo de assassinar o que sentiam um pelo outro. Ela nunca olhou pra trás, nem uma única vez, nem mesmo quando foi correndo ao hospital sem saber se ele estava vivo ou não. Ela matou o que sentia ali e decidiu se transformar em viúva de alguém que ainda vivia.

Ela encarou orgulhosa uma viuvez de quatro longos anos. Tinha a certeza de jamais viveria um amor como aquele, e de fato não viveu, e não queria se arriscar a perder tudo de novo, o que aconteceu de maneira ainda mais violenta anos depois. E se achando segura ela abriu mão de seu luto feroz, e permitiu a invasão alheia que viria a devastá-la sem precedentes. E vivendo um novo luto ela se agarrou à certeza de que tinha tanta morte dentro dela que isso impossibilitaria o renascimento de qualquer coisa que já tivera vida.

Desde então, desde o momento em que abandonou sua mortalha e se permitiu amar e ser amada por outra pessoa, ela nunca mais experimentou esse tipo de saudade. Nem quando seu relacionamento posterior ia se transformando lentamente no maior erro de sua vida. Ela mal lembrava da última vez em que estiveram diante um do outro e tiveram uma conversa decente, seis anos atrás. A última vez que se falaram, numa ligação à distância cheia de falsas promessas e mágoa, tinha sido há mais de quatro anos. Nunca mais havia pensado nele, nos olhos escandalosamente verdes e no cheiro do xampu que ele usava nos cabelos longos, na tatuagem de pássaro negro em homenagem à canção preferida dele que também era a dela. Tudo tinha ficado no campo do esquecimento.

Trazer à tona, de volta à vida, algo há tanto enterrado, e enterrado tão profundamente, não foi um processo simples pra ela: se sentiu pesada e assustada no decorrer do dia. Tentou ignorar o nó na garganta e falhou. Tentou situar as lembranças no campo da memória sem importância e também falhou. Experimentou o gosto que tem o arrependimento guardado por quase dez anos e engasgou, pois era amargo e cruel. Mas ela não chorou. Nem se torturou, tampouco. Ignorou o conselho da amiga que disse para procurá-lo. Ela não era mais a mesma, ele certamente não é mais o mesmo. Ela imaginou, claro, como seria se por acaso tivesse perdoado aquele deslize menor, e talvez ainda estivem juntos e felizes, e talvez ela tivesse vivido várias outras coisas. Mas ela ali, à distância, vislumbrou a possibilidade rica e serena que deixou passar, e se despediu dela sabendo quem ela era. Sem dor. No fim do dia se comprometeu a, dali pra frente, estar mais atenta aos sinais. E ouviu Eric Clapton até sangrar.

Old love, leave me alone
Old love, just go on home