terça-feira, 31 de agosto de 2010

Filosofia zecapagodiana


“Deixa a vida me levar, vida leva eu” é o estribilho do famoso samba que faz os filósofos-teóricos arrancar os cabelos por considerarem uma apologia ao conformismo e a vida sem planejamento e\ou reflexões.
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Por um lado concordo com tal preocupação, por considerar que realmente existem coisas que estão ao nosso alcance decidir e manipular. Mas por outro, no que se refere às questões do amor, discordo de toda a vã filosofia (ela me permite chamá-la assim) e assumo o conceito romântico que muitos denominariam ingênuo: a vida amorosa tem uma dinâmica própria, com alto nível de livre-arbítrio.
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Esse conceito que denominamos filosofia zecapagodiana, diz que as afirmações do tipo “tenho muito que conquistar profissionalmente, nunca vou me apegar a ninguém” ou ainda “o casamento é uma instituição falida”, merecem um sorriso irônico e um olhar que fala: “ainda vai pagar pela burrice da língua”.
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O planejamento é a comédia do Amor. As metas estipuladas são o stand-up de um sentimento com elevado poder de mudança de planos e não tem orgulho-besta que seja páreo para ele.
Portanto, não marquemos dia e hora para conhecer a tampa da panela, a rapadura do seu queijo e cantando o samba, deixe a vida te levar. Num sarau, na locadora de vídeo, ou no bar sertanejo a coisa inesperadamente acontece. Afinal, o calendário do amor não é solar, e muito menos astral, mas esse já é outro assunto que também vai render samba.

Um Abrir de Janelas

Hoje a Biblioteca abriu suas janelas. O dia amanheceu bem disposto de um vento frio e cálido. Por isso resolveram os coordenadores renunciar ao ar condicionado, e deixar que a brisa do dia novo climatizasse o espaço dos livros e de seus leitores.

As janelas abertas trouxeram do verde das praças os pássaros. Varavam o ar e entravam sutis. Mas depois de certo tempo já estavam fazendo ninho entre Shakespeare e Vinícius de Moraes, e alguns leitores já não mais conseguiam desperceber o eco que o canto dos vários espécimes entoava. Coroando o saguão, o som tinha a amplitude dos sinos de igrejas, mas não faziam doer os ouvidos e nem o juízo. Era um canto alegre e amanhecedor.

E em pouco tempo, os interesses de todos já não eram mais os livros e suas histórias, mas sim os pássaros e seus cantos. Enquanto isso, eu que já havia percebido e me encantado a tempo com aquela invasão mágica, percebi um movimento gracioso de calcanhares entre as primeiras prateleiras em que eu me encontrava.

Atento, encontrei, além de mais pássaros e ninhos, duas pessoas se segurando pelas mãos. Buscavam algo que na hora eu não compreenderia. Na frente ia uma menina, a qual parecia pertencer toda a decisão da busca. E quase pisando nos calcanhares da frente, um menino que parecia tão surpreendido com a caminhada, como os outros com os passarinhos.

O passo apressava-se, e cada prateleira deixada para trás era um adeus que davam ao mundo. E me escondendo no canto dos pássaros, que ecoava cada vez mais forte e tenso como passos a procura de sossego, eu os vi parar.

E pararam na última estante onde só poderiam ser visto por livros e por mim, que os via atrás dos livros de Ornitologia. Pararam e, logo, se encostaram num desejo invejável de paixão impossível. Os lábios se tocaram. E foi aí que eu vi literatura nos lábios alheios. Aquele beijo, entre tantos livros, me encheu de uma poesia única e imensa. Senti Federico Garcia Lorca dentro de mim. Antônio Maria pulsar nas minhas veias apaixonadas. As palavras do Gabriel Garcia Marquez nunca fizeram tanto sentido. Vinícius estava nas minhas mãos. E as letras do Chico Buarque passavam por meus olhos contando com palavras aquela história que eu via na minha frente.

Sim, amigos, eu vi literatura nos lábios alheios. Estarrecido, o beijo foi andando de volta. E eu continuei no cenário daquela ilusão que nunca me pareceu tão verdadeira. Aquele momento tomou-me durante todo o dia. E muita vezes me perguntei se os pássaros conspiraram para que aquele mar de palavras em forma de amor se materializasse a minha frente. Ou se teriam os amantes armado a visita dos pássaros, espalhando alpiste nas estantes, para despistar a atenção da burocracia arcaica que proíbe o beijo entre os livros, e eu apenas como um intruso de aventura alheia, tivesse encontrado literatura onde não haveria de ter. Não sei dizer mais. Não sei pensar muita coisa agora. Não sei quem são. E nem me lembraria a face se os visse de novo.

Só sei que aquele romance visto hoje de manhã não me abandonou a retina. E ao chegar em casa, corri à minha estante e tentei reviver tudo nos livros que tanto guardo. Tentativa infundada. As palavras, sim, eu compreendia melhor. Mas aquela efusão, aquela sensação parece ter virado ninho, e ido embora pela praça com o fechar das janelas.


Por André Cezar

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Skank para todos!

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Hoje não deu rock

Desci. Desci o elevador, alguns degraus e a rua. Fui e confesso: estava à procura de um amor. Em qualquer bar, em qualquer esquina. A cada olhar que cruzava com o meu, eu dizia: vem! Estava com meu vestido decotado e um casaco que não esquentava nada. Apenas um charminho inútil. Na falta de um drink de frutas, pedi uma ice. Não era como aquela da garrafa de gato, mas tinha o gosto (e a sensação) bem parecido. Na verdade, eu desci em busca de um licor de menta no bar da esquina de cima, onde uns negros de dread tocam reggae a noite inteira. Mas estava fechado, assim como o céu que já não me apresentava estrela ou esperança nenhuma. Fui então seguindo a música. E segui com as minhas botas de salto alto naquela noite fria e bem agitada por aqueles estudantes na melhor época na faculdade. Sempre me recusei a fazer parte daquilo, afinal, era uma coisa que eu simplesmente não conseguia fazer parte. Bando de gente chata, afinal. Mas resolvi sair assim, acompanhada apenas pelo resto da noite e pela madrugada inteira. Me aventurando de cabelos soltos e sem bolsos para esconder as mãos sem jeito. Esqueci a Tv ligada, como sempre, com algum filme que me faz dormir, só para não esbarrar no silêncio quando voltasse. Afinal, eu já sabia que aquele show do Chico César, lá n’outro bairro de nome santo, não tinha hora para acabar. Mas eu segui outras músicas, por outras esquinas. Entrei naquele bar onde tem um jukebox que reúne um pessoal meio esquisito, de jaqueta de preta. Por escadas ainda mais escuras, subi para a boate ao som de um tal “eu quero é ver o oco”. Raimundos não me deixa pensar em nada, nem lembrar, nem sentir saudades. Então, talvez fosse “a batida perfeita” praquela noite. Eu cheguei e me encostei num balcão como numa cena de filme. E não resisti de consultar o celular mais do que o necessário. Deveria tê-lo deixado em casa e de preferência desligado: ninguém me ligaria mesmo, e, assim, eu nem arriscaria ter essa certeza. Resolvi curtir o som, as pessoas e a minha ice. Tudo poderia continuar e terminar tranqüilo se aquela bandinha não resolvesse se aventurar com um Led Zeppelin. Eu devo até ter fechados olhos por alguns segundos e mexido a ponta do dedão do pé. O grupo seguiu com Red Hot Chilli Peppers e Foo Fighters. O detalhe é que tudo isso soava bem porcamente aos meus ouvidos. De início, até me dediquei a não perceber aquelas atravessadas, aquele inglês meia-boca e o repertório grosseiro. Mas, não deu! Talvez eu devesse ter topado o Chico César. Talvez, me deixado levar pelo sono do filme de sexta-feira à noite da rede Globo. Talvez... - Amor, fica para outra noite, esse guitarrista sem coração embrulhou meu estômago e me tirou qualquer remota vontade de me apaixonar. Voltei para casa. Fui dormir, novamente, na minha cama gelada, sem amor, e, pior, novamente com a certeza de que os showzinhos de rock não servem pra nada.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Abraço












Quando me abraçou
Você disse: Tá tudo bem, amor
E eu me despreocupei
Era pra ser assim, não era?
Eu respirei aliviada
e você disse: não foi nada
Desculpa a espera.
Eu te desculpei
Você me olhou nos olhos bem demorado
E me convidou pra dançar
Eu já te avisei que eu danço errado
Mas você disse não se importar
Era assim, não era?
Você não se importava se eu errasse
Sempre compensava o meu passo
Implorava que eu dançasse
Hoje já não sei
Acho que não é mais como antes
Sinto que dancei
A diferença é que agora
Você não está aqui pra compensar
Mais o meu passo
Eu nem queria mais dançar
Bastava apenas que repetisse
O que me disse
Naquele abraço.


Thaís Carvalho

domingo, 22 de agosto de 2010

"Tudo Passa"

"Tudo passa!" Quem na vida nunca ouviu isso? Talvez esta seja a expressão de consolação mais dita e exatamente por isso mais ouvida no mundo. Como todo clichê, este também carrega em si uma quase-verdade que perdura tempos, é fato que o tempo não pára e a história insiste em encadear um acontecimento após o outro, mas a questão é que não tenho certeza da obviedade de seu significado. Esse "conforto" serve para várias situações, por exemplo, corriqueiramente, principalmente quando se é moleque, nos machucamos, digo fisicamente mesmo, uma topada na quina da mesa, e eis que vem a mãe, segura sua mão e fala no auge da dor "vai passar meu filho", e você pensa tomara que passe mesmo, ótimo, tudo que você quer saber nesse momento é que passará. Mas pensemos em uma outra situação, se está sofrendo de amor, você acabou de perder aquela pessoa com a qual jurava que iria dormir o resto de seus dias, você não imagina sua vida sem ela, seus planos não foram interrompidos de fato, continua pensando como dois e não como um, não houve tempo para reformulação e nem mesmo sabe se quer mesmo reformular, afinal não parou para pensar nisso racionalmente, a dor não deixou espaço para outra coisa que não lamento, e então eis que vêm as palavras mal-ditas "Nessa vida tudo passa". Pootz, será que passa mesmo? Contudo, o problema não é bem esse, a pergunta fica melhor em outros termos, se quer realmente que passe? Eis a questão, em alguns casos não se quer que passe e, nesses casos, a reação ao ouvir esse "tudo passa" é aquele sorrisinho amarelo, do tipo "sai daqui", ou "me deixa", e continuar de certo modo pensando em todos os planos, em todas as lembranças nostálgicas, em todos os sorrisos verdadeiros que você anseia, talvez em vão, rever, re-sentir, reviver. Tudo que se quer é que o tempo pare, ou melhor, volte, menos que 'passe', porque isso dá a estranha sensação de vazio, do tempo que está passando e seu amor do outro lado do mundo vivendo algo no qual já não está mais incluso, mas deveria. O "tudo passa" aí não preenche nem conforta, ao contrário, esvazia, e como um tapa na cara te mostra o que você está perdendo. Enfim, tudo passa? A resposta é óbvia, sim, mas felizmente para alguns e infelizmente para outros.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Legumes




Naquela época, eu achava que ficaríamos juntos para sempre. Que Carolina sempre estaria lá, para me apoiar. E eu sempre a amaria. Mas a vida nem sempre acaba sendo como nós imaginamos, e depois de tanto tempo é engraçado pensar como as coisas chegaram a este ponto. A verdade é que eu nem lembro mais como acabou. Que dia que nós decidimos que já não era mais possível ficarmos juntos? Quais foram as suas ações que me fizeram parar de tentar? Quais foram minhas palavras que lhe fizeram ir embora? E as brigas, que por tanto tempo remoí pra me convencer que nós devíamos viver nossas vidas separadas, já me fogem da memória. Mas eu sempre tive uma péssima memória. Era sempre você que lembrava onde tinha colocado a chave ou qual era o dia de pagar a conta de luz. Engraçado, dessas coisas eu ainda consigo lembrar. É como a cor de seus olhos. Simplesmente, eu não consigo esquecer. Por mais que me esforce, e acredite, nos primeiros meses que passamos separados, eu teria pagado um médico como aquele do filme do Jim Carrey, aquele com a menina de cabelo azul que tem o nome de uma música (ou seria um personagem do Dom Quixote?) para apagar a cor daqueles olhos castanhos com pequenas manchas esverdeadas da minha cabeça. Mas com o tempo as lembranças que eu mais me apegava – você quebrando o prato de porcelana na parede; os deboches na hora do jantar; a forma que você sempre conseguia me tirar do sério enquanto assistíamos um filme – foram se apagando, fugindo pelas pontas do dedo, saindo durante o banho, me escapando entre os bytes do computador. E cada vez mais seu sorriso, a maneira como apertava a ponta dos dedos quando estava em dúvida com algo ou como gostava de enrolar a ponta dos cabelos enquanto lia um livro iam ficando grudados, presos, e eu simplesmente não podia mais fingir. Talvez seja por isso que tenha começado a me esconder. Fugir daqueles lugares que sabia que você estaria. Inventar desculpas para os amigos em comum. Pular as músicas que lembravam você da playlista no meu computador. Esconder as fotos em caixas em baixo de outras caixas. Era o medo de descobrir que em algum lugar ainda estava o sentimento que me fizera me apaixonar por você. Medo de te encontrar, e me ver novamente preso aquele relacionamento que havia tomado 15 anos da minha vida, 9 com você e o restante para te superar. Qual foi minha surpresa ao te encontrar no supermercado, e descobrir, em meio a seção de legumes, que na verdade não havia como voltarmos ao passado, nem que eu quisesse. Seu cabelo estava mais grisalho, e consegui identificar algumas rugas que não estavam ali da ultima vez que te vi, dois anos atrás em uma exposição de arte, lembra? Acho que naquele momento fiquei decepcionado. Era mais fácil imaginar que ainda restava, no meio de tantas boas recordações, um pouco daquele amor que nos uniu, e não apenas algumas cordialidades. Depois de tudo aquilo, de tantos sentimentos, de dois abortos, de três separações e dois reatamentos, não deveria haver espaço para cordialidade. Não deveríamos conversar sobre Francinne e seus filhos, ou sobre como os dias tem ficado cada vez mais quentes e os programas de TV estão cada vez mais violentos. Deveríamos falar sobre aqueles segredos que trocamos em baixo dos lençóis naquela semana de folga que tiramos no interior depois de Luiza saiu do hospital. Mas apesar de tudo, acho que foi melhor assim. Estamos velhos, de qualquer forma. Não aguentaríamos uma paixão como a nossa de novo. Iríamos ficar sufocado com um amor daquele. Era melhor vê-los transforma-se nesse sorriso cúmplice que você me deu antes de ir para o caixa. Fez tudo valer a pena.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Homem no Espelho

Eu sei, texto longo. Basta dar uma chance, tá?


Eu sei, é o que todos dizem: histórias de pessoas e espelhos já foram contadas antes, anos e anos antes de mim. Mas esse maldito espelho de última categoria que tenho no meu quarto não conversa comigo, não me leva a outras dimensões e tampouco afirma o óbvio: que existe alguém mais belo que eu. Ele só me mostra diariamente minha degradação física e meus colapsos mentais.
Eu tinha uma esposa. Quer dizer, ela não era bem minha esposa, nunca fomos formalmente casados. Mas eu a conheci aos dezenove, montamos um apartamento aos meus 21 e vivemos juntos por 13 anos, quando eu tive meu primeiro colapso mental e a deixei. Aproximadamente dois anos depois ela morreu, suicídio, a covardia mais corajosa que já vi alguém cometer. Eu já estava doente antes disso e continuo doente agora, agora que se passaram cinco anos da morte dela, e muito embora eu tenha piorado consideravelmente desde que ela se foi, meu corpo sempre se esquece de morrer. Coisa muito agradável de se fazer, por sinal. Desde que ela morreu eu me abracei à minha mortalha e tenho esperado pela Indesejada, que anda me ignorando solenemente.
Nina nasceu pra mim numa noite subterrânea na faculdade. À época eu já parecia doente, tinha um quê de sorumbático que irritava muita gente. Sempre fui uma pessoa grave e silenciosa, tão tímido quanto um ser humano podia ser, e isso parecia meio arrogante às pessoas. Ou seja, eu praticamente não tinha amigos. Cursava Filosofia, era chato e carregava comigo a maior solidão do mundo. Andava pra cima e pra baixo com meu maço de cigarros completamente amassado, um livro velho que de tão lido e relido eu já tinha decorado e o porta-uísque sempre abastecido, que passou do meu avô imediatamente pra mim por ser meu pai um abstêmio convicto e feroz. O livro era Cem Anos de Solidão, em espanhol, uma raridade que encontrei a um preço irrisório num sebo vizinho à minha casa, abandonado como eu. Não tinha lá muito respeito por ele, fazia todo tipo de anotação nas suas páginas e, por nunca deixá-lo na estante, estava todo deteriorado. Mas eu tinha um apego sobre-humano àquele exemplar, como se eu não pudesse andar sem ele. Falava pouco às aulas e, às vezes, sequer atentava para a explicação do professor, absorvido na produção do meu romance, a minha grande obra que nunca consegui concluir na vida, uma das muitas coisas às quais me dediquei e falhei miseravalmente. Ora, nem morrer eu consigo.


Nina, era de Nina que eu falava. Era uma aula de Ética III, uma das matérias mais insuportavelmente enfadonhas de todos os tempos. Metade da sala dormia e a outra metade se concentrava em qualquer coisa que não fosse aquele senhor já idoso lendo o seu plano de aula. Saí da sala sem ser notado – não que fosse uma tarefa assim difícil – e acendi um cigarro no corredor. Sorvi a fumaça como se finalmente voltasse a respirar, tomei um gole do uísque e me sentei no chão pra reler meus apontamentos. Já disse que era uma noite subterrânea, não disse? Sim, a sala era no subsolo da faculdade, e aqueles corredores silenciosos e sombrios estavam sempre à espera de uma anunciação. E ela veio.


“O coração, se pudesse pensar, pararia”


Bernardo Soares. Meu coração parou, assim, mas sem pensar. Alguém ali ou além recitava Bernardo Soares. Me ergui num salto mais ágil do que me sabia capaz e quase caí, olhando ao redor e procurando a voz, ou melhor, a dona dela.
__ Gosta de Pessoa?
Ela estava à minha frente, e parecia que sempre estivera ali, eu é que nunca havia enxergado.
__ Gosto muito de Pessoa. Mas o Bernardo é meu favorito.
__ É, eu reparei – resmunguei sem inteligência.
Era branca de uma brancura absurda, palpável, quase líquida. Meu instinto foi tocá-la, mas não pude, eu já não fazia mais sentido. Mal sabia se ela existia. Contrastando com sua brancura líquida, cabelos lisos de um negrume só, uma escuridão impenetrável.
__ Como é seu nome?
__ Breno.
__ Oi, eu sou a Nina.
Ela sorriu, e eu sorri de volta só porque o sorriso dela me encheu de uma felicidade imbecil. Ela usava um vestido de um amarelo berrante que ofuscava, e quando se aproximou pra me dar um abraço – que só recebi, sem retribuir – causou um choque visual ao se encontrar com a minha blusa preta.
__ Desculpa, mas de onde você saiu?
__ Festinha nas Cênicas. Fui ao banheiro e na volta te vi fumando. Então vim pedir um cigarro.
__ Você faz Cênicas?
__ Não, Desenho Industrial. Você pode me dar um cigarro? O que você estuda?
__ Filosofia.
__ Interessante. Por que não está na festa?
__ Não sou de festas.
Ela esquadrinhou o chão à procura do isqueiro e encontrou meu livro.
__ Um intelectual, é? Sabe, eles também frequentavam festas. Os intelectuais. Bebiam absinto e usavam drogas, essas coisas.
Dei de ombros. Ela riu, superior. Sacudiu o livro com pouquíssimo zelo, quis matá-la. Mas não pude.
__ Gosta de García Márquez, pelo visto.
__ É meu preferido. Esse é o livro da minha vida.
__ Sei. Você carrega consigo a maior solidão do mundo. Eu até gosto dele, sabe? Mas prefiro poesia.
__ Você é passional.
Sorriu novamente, com gosto.
__ É? E de onde você tirou isso?
__ De lugar nenhum. É só uma teoria.
Estava nervoso, incomodado, intimidado e crescentemente envergonhado. Ela tinha um ar insolente que me desnorteava, eu não sabia o que fazer das minhas mãos. Por fim tomei o livro e o isqueiro dela e dei as costas.
__ Onde você vai, Bruno?
__ É Breno. Meu nome é Breno. Vou voltar pra aula.
Ela me puxou pelo braço, sempre sorrindo.
__ Esquece a aula. Vem, vamos nos espalhar por aí.


Passei três dias seguidos na casa dela, vivendo de sexo e brisa, ou seja, um amor desesperado e latente. Eu me apaixonei pela sua loucura. A casa era o exemplo da desordem, o som era alto dia e noite, pessoas iam e vinham a qualquer hora e ela se alimentava de maconha. E mesmo bebendo feito uma lontra selvagem e fumando maconha como quem respira ela quase nunca dormia. Tinha o maior número de amigos que pude imaginar e pintava o tempo todo, andando pela casa em trajes sumários como se estivesse sozinha. Por vezes ela me deixava à deriva e se perdia nas coisas dela que eram só dela e continuariam sendo pelos próximos quinze anos.
Dentro do que conseguimos aceitar como sensato construímos nossa vidinha. Ou melhor, ela construiu sua vida com o resto do mundo, eu construí um castelo inacessível e nos tranquei na torre mais alta. Minha vida era ela. Meu sangue era o dela, meu respirar era o dela. Trabalhava por trabalhar, estudava por estudar, eu vivi Nina em desespero.


Dois anos depois de sua morte eu tive meu segundo colapso mental e larguei o emprego, prestes a me aposentar integralmente por invalidez. Meu pai ficou felicíssimo, claro. Pediu minha interdição e me trancou num hospital em São Paulo para tratamento. Terapia, quimioterapia, eu só queria morrer, mas não podia. Nina morta em mim doía, toda a dor do mundo, toda a solidão do mundo. Após um ano tive o terceiro colapso, me dei alta daquele hospital infernal e me mudei para o Rio de Janeiro. Fumava dois maços de cigarro por dia pra ver se apressava a hora de ir embora e bebia ininterruptamente. Escrevia, virei escritor, fui publicado e lido aqui e ali, foi no terceiro mês de Rio que o espelho apareceu. Só comprei pra me livrar do vendedor, larguei aquela monstruosidade barroca no meu quarto e não lhe dei atenção por uns quatro dias, até me ver refletido nele.
Tive o quarto colapso mental, então. Parei de fumar, reduzi drasticamente a bebida àquele cálice de vinho famigerado dos cardiologistas e tentei fazer uns amigos. Cheguei a viver um pseudo-amor com uma moça branca e bela que hoje me odeia violentamente. Adiei a morte enquanto me foi possível, mas por um motivo qualquer que ainda agora ignoro completamente, pois não havia vontade, não havia apego nenhum à vida. Continuei a amar Nina de um jeito tão doentio e agalopado que me parecia errado não estar com ela.


Hoje, hoje tive meu quinto e último colapso mental, eu acho. Cheguei em casa mais embriagado que uma marmota mutante e vi Nina branca, incrivelmente branca, no espelho. Sem pensar uma vez sequer eu o destruí, juntando seus destroços sobre a cama, e me deitei ao seu lado, todas as pílulas nas mãos ensanguentadas.


“O coração, se pudesse pensar, pararia”. Acho que pára dessa vez.


*

Breno é personagem antigo, nasceu em 2004. Um querido. A história dele tá toda no meu outro blog, o Cognome - Verdade. E esse texto faz com que eu olhe no espelho e veja alguém que faz literatura. Depois passa ;-)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Dicionário da Mulher – Verbete: A penumbra

Muito antes do século XVIII, conhecido como “o das luzes”, já havia um consenso entre os sábios: o breu pré-cópula é indispensável. Sem essa de questionar a astúcia do subalterno que criou o sacro-eufemismo do “vamos dormir juntos”. Não se adormece no claro perturbador de uma lâmpada incandescente. Opte pelo caminho ecoprático, palavra tão em moda ultimamente, e apague a luz. Desencarne da figura do pivete que molha a cama por medo do escuro.

Nem que seja na primeira vez, camarada. Nunca, sem exceção, negue para a dama o direito à luz fraca na avant-première conjugal. Por que, hombre de pouca fé, achas que na história dos escurinhos de cinema, nunca existiu uma exibição de película sem ao menos uma mão boba na platéia? É lógico! Sim, porque uma mulher gosta da penumbra, câmera e ação!

E no exercício heróico da humildade, algumas fêmeas ainda inventam argumentos para justificar. Dizem que estão envergonhadas com as imperceptíveis celulites e estrias que porventura podem ter. É balela, amigo. Elas apenas tentam te mostrar que o corpo da amada não é um prato que se come com os olhos. Devemos saborear tateando cada parte da sua anatomia, de preferência, benzida com beijos páfrentes.

Abro aqui até a intimidade deste escritor, onde a partir deste momento passará a ser visto com outros olhos quando passar na rua por quem freqüenta este blog. Tenho uma camisa vermelha, da cerveja Duff, exclusiva para este ritual. Ao jogá-la sobre a luminária vizinha da minha cama, torna o ambiente rubro. Esta penumbra ruiva serve de testemunha para coisas que dariam sentido à fama de casas da iluminação vermelha.

Arrume um abajur não afrescalhado e faça o ambiente. Mujer gosta do clima. Isso é romântico. Faça esse agrado pra bichinha e aproveite, rapaz. Com paciência, ela até te libera da fase das trevas, sem medo de ser feliz.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Nenhum, nem outro*

Certa vez, eu disse:
Ele é de verso.
Eu sou de prosa.

Ele é das estrelas.
Eu sou da lua.

Ele é do sal.
Eu sou do açúcar.

E hoje, observo, assim, discreta:

O que é mesmo verso e prosa?

É que as manhãs têm ficado cada vez mais estreladas,
E a lua inventando fases que eu nem queria ter...

E que doce é esse que eu, uma formiguinha segura, nunca experimentei?

*das palavras perdidas que a gente encontra perambulando nas gavetas do esquecimento, assim, meio sem por quê - e que nunca foram entregues.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Pensamentos que me dizem...*

O amor vulgarizado, a palavra perdida e o sentimento desconhecido.

Amar não é beijar na boca, passear de mão dadas, apresentar aos pais ou ter noites maravilhosas com alguém. De todas essas coisas, todas podem ser obtidas sem amor.

Acesso bastante internet, sites de relacionamentos, blogs, enfim, toda besteirol. Vejo meninas e rapazes trocando de namorado(a) toda semana (o que não acho mal, ou errado, de modo algum). Só acho interessante toda semana amar e querer alguém eternamente. Declarações e declarações, muitas vezes uma mais clichê que a outra. Esquecem-se de viver o sentimento nessa verdadeira ânsia de desejar ter alguém. Parece que as pessoas forçam-se ao amor, que assim não alcançam, e acredito nunca alcançaram. É um meu amor pra cá, meu amor pra lá.

Mas o que vivem juntos? O que valorizam? O que desejam?

Namorados de fotografia - expõem beijos e abraços, poses e mais poses, festas e felicidade infinita. As meninas que se pintam, os namorados de carros novos, os amigos bonitos, bem apessoados. A balada do fim de semana. Por que é tão necessário mostrar-se demasiadamente feliz? Por que não buscam ser felizes ao invés de tentar transparecer isto?

A impressão é de que, as meninas, muitas vezes, querem mostrar-se invejáveis, com seus corpos esbeltos, maquiagem bonita, roupa da moda. Não percebem que a personalidade que têm, que julgam inabalável e super diferente, nada mais é do que a mídia formata, realmente para que pensem assim. Todas iguais.

Os meninos, cada vez mais robustos, malhados e beberrões., parecem cada vez mais irresponsáveis. "Aproveitam" tudo! Na verdade, provam tudo. Sem saber que provar não é aproveitar - pelo menos não como a manada pensa.

Também acho interessante divertir-se com as memas festas, as mesmas cervejas, as mesmas músicas. O porre, o mico, a besteira cometida. É sempre a mesma conversa quando se fala sobre o último fim de semana. Talvez tenha sido uma menina mais bonita, uma mais feia, talvez tenha sido numa chácara ou boate, talvez tenha batido o carro, vomitado, ou não. Mas os atos e as buscas são as mesmas, as consequências nem sempre.

Vivemos mesmo de aparência, alimentada por amores cibernéticos, de amizades para fotografias, do desejo de ser invejável, desejável., provocativo.

Prefere-se mostrar-se vivo ao entender e viver a vida.

Mas pensar nisso é besteira, melhor sentar e pedir uma redonda.

*Texto de Priscila Costa, excelente escritora que mora em Porto Velho e escreve aqui.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Se*

Um poema antigo, guardado no baú das recordações.

Se eu te amar
Seu peito será meu abrigo
Suas mãos serão meu apoio
Teus olhos serão meu espelho
Tua vida será minha
E minha alma será tua

Se você me amar
Te darei meus sonhos
Te darei meu carinho
Te darei minhas ilusões
Minha vida será sua
E sua alma será minha

Se nós nos amarmos
Seremos um só
Andando de mãos dadas
Olhando nos olhos
Tornando reais os sonhos
Dando e recebendo carinho
Compartilhando as ilusões
Vivendo a mesma vida
Morando na mesma alma.

* Da nossa antiga colaboradora e romântica, Álefe Souza.