Essa coisa toda de
trilha sonora acabou surtindo efeito, mesmo que independente da minha
vontade. Dois anos se passaram e nunca mais ouvimos falar do ex-noivo
que a abandonou no altar, e se o universo não viesse em meu auxílio
eu mesmo tratava de criar uma possibilidade de trilha sonora pra ela.
Dava trabalho, às vezes, mas eu sempre conseguia arrancar o sorriso
que me transformava em refém. Era feliz com ela. Os dias eram bons.
Às vezes ruins, brigávamos muito no estádio, o que me fazia amá-la
ainda mais. No escritório também tudo corria da melhor maneira
possível, tanto que achava que em breve chegaria um convite pra uma
sociedade. Fazia sentido: eu era competente e fazia a filha do chefe
feliz.
Até que veio São
Paulo.
Foi um pedido especial
do pai dela, e eu não podia negar. Mas ao mesmo tempo não queria
deixá-la – fazia pouco tempo que morávamos juntos e eu me sentia
miseravelmente feliz por acordar e ter aquela mulher na minha cama.
Mas era trabalho. Um trabalho a pedido do chefe. Era a minha
sociedade acenando, do carro, me perguntando se eu não ia entrar.
Entrei.
Os primeiros seis meses
foram tranquilos: nos víamos todo final de semana. Quase sempre ela
vinha, e eu transformava o aeroporto numa cena clichê de filme de
romance só pra ela. E ela adorava, e dizia aos meus amigos
paulistanos que era minha musa. E era. Nunca fui um cara de
relacionamentos longos, e de repente percebi que queria ficar com ela
o resto da vida.
Percebi que queria me
casar. Era isso. Na igreja, com a pompa devida, ela no altar me
esperando.
Um dia, andando na rua,
parei pra olhar a vitrine de uma joalheria e vi o anel. E sabia que
ficaria perfeito nela. E sabia que ela adoraria. E comprei. Mas ela
não veio nesse fim de semana – ligou na sexta pela manhã dizendo
que tinha uma reunião de última hora no escritório e não poderia
ir. No final de semana seguinte ela também não pôde ir. E no outro, e no
outro, e assim se passaram dois meses sem que a gente se visse.
Pensando hoje, nem lembro mais quais eram os motivos da ausência,
mas eram coisas tolas a maior parte das vezes. Passíveis de serem
contornadas. Me ressenti pela falta de esforço dela, e obviamente
responsabilizei minha própria ausência. Então conversei com o
chefe e ele me deixou voltar.
Ela não foi me buscar
no aeroporto, e quando cheguei em casa ela não estava. Tinha um
bilhete dizendo que estava com o pai e não demorava. Ótimo, pensei.
Dá tempo de comprar umas flores e velas e sei lá mais o quê pra
fazer o pedido. Daí percebi que, muito embora fosse bom na parte da
trilha sonora, essas coisas de pedido de casamento eu não sabia como
funcionavam. Fiquei horas pesquisando na internet, até que ela
chegou. De imediato, senti que havia algo de diferente nela. Me deu
um peso no estômago, e na hora eu não soube precisar o porquê. Só
senti.
__ Você tá tão
diferente – eu disse, depois de um beijo.
__ Impressão sua. É
que faz tempo que a gente não se vê.
Mas a sensação
permaneceu. E nos dias seguintes, se intensificou. Ela havia mudado.
E havia uma gravidade nela, um peso, algo que ela não costumava
carregar.
__ Já sei o que
aconteceu com você?
__ Como assim?
Ela pareceu alarmada.
__ Seu perfume. Você
mudou o perfume.
__ Ah. É verdade.
__ É o perfume que
você usava naquele dia que eu te conheci.
__ Deus, você lembra
disso?
__ Lembro. Apesar do
cheiro da cachaça ter sido bem marcante também.
__ Hum.
Esses “hum” também
eram coisa nova. Lembram da gravidade a que me referi? Juntem com
ausência e silêncios.
__ Por que você voltou
a usar esse perfume?
__ Não sei. Acho que
enjoei do outro.
__ Eu preferia o outro.
O que eu comprei pra você.
__ Pois é. Eu também
gostava muito dele. Mas fiquei com saudade desse aqui.
__ Hum.
Ela sorriu, pela
primeira vez em dias. Mas veio diferente, e me feriu.
__ Posso perguntar o
que há de errado?
__ Nada. Por quê?
__ Você está
diferente. Disse isso assim que te vi e tenho razão. Cadê minha
mulher?
__ Besteira, Filipe.
São coisas do trabalho.
__ Bom, trabalhamos
juntos. Você pode me dizer.
Ela parou com as
anotações que fazia e me jogou aquele olhar escrutinador, o mesmo
da primeira cena.
__ Amor, meu pai acha
que é melhor você procurar outro escritório.
__ O QUÊ?
__ É. É por isso que
eu estou assim. Ele me pediu pra dizer isso, mas eu não sabia como.
__ Ele...ele ao menos
disse o porquê?
__ Bom...ele acha que
não pega bem, visto que temos um relacionamento. Os outros
arquitetos reclamam de privilégios e tal. Você pegou a maior conta
da empresa.
__ A de São Paulo? A
que eu não quis?
__ Amor...
__ Olha...essa eu não
vi chegar. Mesmo. Pelo contrário, achei que seu pai me ofereceria
sociedade depois de São Paulo.
__ Ai, Filipe. Sei nem
o que dizer.
__ Nada. Não precisa
dizer nada.
Saí pra beber e voltei
já com a madrugada dentro. Ela não estava em casa. Novamente, um
bilhete dizendo que tinha ido dormir na casa do pai. Celular
desligado.
Enterramos o assunto
pelos dias seguintes, e eu decidi propor casamento logo de uma vez,
visto que agora nem o trabalho seria problema. Comprei flores
(margaridas, as preferidas dela, que odiava rosas) pra casa. Pensei
em mandar pro escritório mas ela ia achar brega. Comprei velas mas
não acendi nenhuma, pois me passou a impressão de funeral. Só
fiquei sentado no sofá esperando ela chegar do trabalho, o anel no
bolso esquerdo e a mão pingando suor frio.
Ela chegou com ar
cansado e aparência de quem tinha chorado. Eu a abracei e ela chorou
ainda mais. Perguntei o que havia e ela voltou a dizer que nada. Pedi
a ela que tomasse um banho quente pra relaxar, que depois eu
precisaria conversar com ela. O banho durou, sei lá, 326 horas. E
ela não saiu relaxada, pelo contrário. Os olhos estavam ainda mais
inchados e vermelhos.
__ Filipe, tenho que te
dizer uma coisa.
__ Eu também.
__ Por favor, me deixa
falar primeiro.
Ela se sentou ao meu
lado e segurou minha mão.
__ Por favor não me
odeie.
__ O que houve?
__ Ah...por onde eu
começo? Filipe, eu sou horrível.
__ Por favor não diga
isso. O que aconteceu?
__ Lembra meu ex-noivo?
Imediatamente soltei a
mão dela. Em um microssegundo tudo, absolutamente tudo fez sentido.
Ela voltou a chorar e
contou que esteve com ele todos os dias nos últimos três meses. Que
não sabia como tinha acontecido, mas tinha acontecido e era o que
ela queria pra ela. Que foi covarde em não me dizer, que não devia
ter se afastado, mas não soube o que fazer. Que eu era uma pessoa
muito boa e tinha sido um grande amigo pra ela, mas ele era o amor de
sua vida e ela tinha certeza disso. Que pediu ao pai que me afastasse
da empresa porque não conseguiria trabalhar comigo depois do que me
fez. Falou mais um milhão de coisas que eu simplesmente não ouvi,
porque cada palavra me matava um pouco. Só não pediu perdão, nem
uma única vez. Minha mão já tinha parado de suar, mas tremia. Ela
pedia pra eu olhar pra ela, e eu não conseguia. Tirei a mão do
bolso, o porta-jóia molhado de suor.
__ Eu ia te pedir em
casamento.
A música começou,
como eu tinha programado, e eu não podia suportar. Me levantei e
bati a porta atrás de mim. Parei por um segundo no corredor, a respiração suspensa. Pra nada. Ela nunca veio me chamar.