quinta-feira, 16 de maio de 2013

Ritual


Toda sexta-feira ele desaparecia. Não atendia celular, os amigos que eu ainda tinha coragem de ligar nunca sabiam dele, ele simplesmente sumia. No início ele me dizia que tinha ficado preso no escritório, que o pneu furou e ele tava sem bateria pra chamar o seguro, depois de um tempo era tanta desculpa estapafúrdia que eu simplesmente deixei de acreditar. Eu sabia o que ele fazia – não sabia onde, nem com quem – mas sabia o que ele andava a aprontar. E toda sexta-feira eu derretia de ódio. Sentia ódio dele em todos os poros do meu corpo. Era medonho. Eu tinha febre, e cerrava os dentes, e não dormia, e chorava, e começava a imaginá-lo morto. Morto. E eu imaginava a morte dele bem lenta e com muita dor, e ele me pedia perdão com os olhos vidrados de desespero e aquilo me dava um prazer aterrorizante. A essa altura eu já o tinha matado empalado, queimado, envenenado, mutilado, atropelado, crucificado. Cada sexta-feira era uma morte diferente, e às vezes eu fazia umas pesquisas durante a semana, pra garantir que opções não faltariam. E ficava lá, na cama, comendo cigarros, os olhos inchados de dor e mágoa, saboreando cada detalhe da morte dele.

Mas aí, no sábado de manhã, no sábado de manhã ele chegava, cheirando a álcool e penteadeira de puta, e me abraçava e pedia perdão. E chorava, e dizia que não mais faria aquilo comigo, que não era justo, e pelamordedeus me perdoa, e eu dizia que tava cansada, que aquilo não dava mais pra mim, e ele enfiava a cabeça no meio das minhas coxas e eu gemia e chorava e gemia. Aí ele me deitava na cama e me penetrava com tanto cuidado que o ódio ia embora, aos pouquinhos, devagarzinho, e ele lambia meu mamilo e pedia perdão, e eu perdoava e sorria, e aí ele acelerava, o ódio ia voltando à medida que ele também ia acelerando, e quanto mais rápido ele me fodia mais rápido o ódio voltava, aí eu explodia em gozo e raiva, e chorava e chorava e chorava. Ele se limpava com o lençol, virava pro lado e imediatamente começava a roncar. E eu, chorando chorando chorando, ia pro banheiro, tomava um banho quente e eterno, até a raiva passar, até eu conseguir enxergar de novo, e ia embora pra casa da minha mãe. Todo sábado de manhã era isso. Todo sábado, há anos, era assim.

No domingo à noite eu voltava pra casa e ele me levava pra jantar. E nunca conversávamos sobre o que acontecia toda sexta à noite e todo sábado de manhã. Nunca conversávamos sobre nada. Ele me falava sobre a expectativa dos negócios da semana, xingava minha mãe, falava dos passeios com o cachorro. E eu ficava calada olhando pra ele, imaginando se ia doer se eu enfiasse a faca de mesa no ouvido dele ali mesmo, naquela bosta de restaurante chinês que ele me levava todo domingo. Depois ele me levava pra melhor suíte do melhor hotel da cidade e pedia champanhe e a cama estava coberta de rosas e a gente trepava por horas e horas e eu sentia tudo ao mesmo tempo, amor e ódio, e às vezes eu apertava o pescoço dele com um pouco mais de força, só pra saber como seria se eu o matasse, e ele gostava, e cada vez que eu apertava mais o pescoço ele se contorcia todo, e pedia mais e mais e eu apertava mais e mais. Depois a gente gozava junto e caía cada um pra um lado da cama, e se olhava pelo espelho, ele ria e dizia que me amava, e eu segurando a lágrima respondia que o amava também, aí ele fazia cócegas na minha barriga e a gente ia pro banho junto e quando via já era quase segunda e já era hora de voltar à vida. Era o nosso ritual.

Aí veio uma sexta que ele não saiu. Chegou cedo em casa, nem tinha jantar porque na sexta eu liberava a Rosa mais cedo, sabendo que ele não vinha, mas nessa sexta ele veio do trabalho direto pra casa. Pediu uma pizza, assistiu ao jornal e lá pelas dez tava dormindo. Acordou cedo no sábado, cuidou do jardim e do criadouro dos cachorros, fez almoço, à tarde foi pra rua comprar coisas pra casa e voltou com pipoca, sorvete e Dirty Dancing. Assistimos ao filme juntos, ao final imitamos a coreografia, ele fez as vezes de Patrick Swayze e depois nos deitamos abraçados, e ele me beijava com calma e bem devagar, a noite inteira, como há muito não nos beijávamos, e ele me olhava como há muito não me olhava mais, e cheirava meus cabelos e dizia que me amava muito, tanto e como. No domingo fomos almoçar na casa da minha mãe, de lá passamos num parque de diversões, ele não me levou na porcaria do chinês, voltamos pra casa e, já na cama, ele me contou que tinha percebido o que vinha fazendo, e o quanto me fazia sofrer, e como ele arriscou à toa, por todos esses anos, me perder. Que isso ia acabar, ia parar, que toda sexta-feira ele estaria lá pra dar boa-noite pro William Bonner e seríamos um casal exemplar e de causar inveja nos outros casais.

Eu sorri. Sorri e disse a ele que não queria vê-lo em casa sexta à noite, que não o queria acordado sábado de manhã aparando o jardim, ou indo aos almoços de domingo na casa da minha mãe. Que mesmo que ele não me traísse mais, que ele arranjasse o que fazer na sexta, que eu o queria bêbado no sábado pela manhã, transando comigo como se fosse morrer, e agindo como se nada tivesse acontecido o resto do final de semana. A única exigência que fiz foi excluir definitivamente aquele chinês de merda da nossa vida. Mas expliquei que, embora eu sofresse muito em todos os finais de semana, só assim eu me sentia viva. Que não queria o que a gente já tinha de segunda à quinta, queria aquela loucura e paixão e perdição daqueles três dias porque era a melhor parte dele que eu tinha. Ele me olhou petrificado, tentou balbuciar que nunca havia me traído, falou que isso não era coisa de gente normal, que ninguém pode ser feliz vivendo assim, mas eu mantive minha posição. Expliquei que casada eu já era, com a Rosa, que era quem me ouvia reclamar, quem me auxiliava nas contas, quem via a novela comigo e tudo isso. Isso já era um casamento perfeito e isso eu já tinha, e obviamente jamais seria com ele, porque ele não era assim, ele era vadio e eu sabia, sempre soube, e foi ali que eu vi meu coração a primeira vez e era ali que eu queria ver meu coração pra sempre. Eu disse pra ele que, feliz, aceitava a condição. Era a minha escolha. Se ele quisesse emular um casamento perfeito, que fizesse sua trouxa de roupa e fosse embora atrás de outra mulher, que eu preferia imaginá-lo morto toda sexta feira a ter real vontade de matá-lo logo na segunda pela manhã.

Na sexta seguinte, já passando das três da manhã de sábado, ele me mandou uma mensagem dizendo que o pneu tinha furado e ia dormir na casa de um amigo, mas no sábado de manhã voltava pra casa. Sorri conformada, vesti minha melhor lingerie e esperei ele voltar. Ele chegou oito da manhã, bêbado e roto, eu gozei e chorei e sorri e fiz todo meu ritual. Depois do banho voltei pra cama e fiquei olhando pra ele, até pegar no sono, imaginando uma morte diferente das que eu já tinha imaginado. E ele ainda dormindo procurou minhas coxas, repousou sua mão e me chamou pelo nome. E eu chorei de ódio, feliz da vida, com o coração no lugar.

domingo, 12 de maio de 2013

Da descoberta

Texto sincerista


Eu sabia. No fundo eu sabia que se eu fizesse isso, se eu atravessasse essa ponte que me levava até aquele lugar, eu sabia o que aconteceria. Mas eu pisei firme. Encarei mesmo, pensando que se o risco era esse, que fosse. Ia valer a pena. Por mim, nem sei se pela outra pessoa, mas por mim mesmo. Fazer isso por mim. Me dar essa chance.

E aí eu acordei. E tudo que vinha dormindo em mim acordou também. Sabia que não tinha morrido, essas coisas nunca morrem. Esse arrepio, a dúvida de saber como será quando estiver por perto, esse stalkear fajuto nas redes sociais. Acordou e não acordou como um monstro - acordou sereno. Sorrindo.E é bom.

Esse início de paixão. Essa coisa que a gente sabe exatamente onde termina, porque não tem mesmo pra onde ir. Mas a gente se permite viver isso porque, ora, é bom. É bom se reconhecer em outra pessoa. Sem aquilo de se sentir completa, só se reconhecer mesmo. Já estive partida, vivi partida por muitos anos, e terminei em pedacinhos. Quero isso de novo não. Quero o que eu tenho agora, esse conta-gotas, esse imaginar como seria, se pudesse ser. Esse se perguntar se é isso mesmo, se a intenção é essa, se é tão claro pra ele e pros outros como é pra mim. De imaginar que tudo é cifrado e ele diz uma coisa querendo dizer outra. Se o desejo dele é gêmeo do meu. Cansei de amor louco. Quero só essa paixãozinha fajuta pra me tirar o ar vez em quando, pra eu beber só quando der sede, se der sede. Não quero a urgência, prefiro essa espera, a doce espera pelo estar junto de novo, se assim caminharmos pra isso. Quero esse rubor ao acordar do sonho sem querer acordar. Essa coisa que queima devagar, sem pressa, que vai se acostumando ao fogo que lambe aos pouquinhos. Não quero a dúvida de saber onde anda e com quem anda, o que faz ou deixa de fazer. Prefiro não ouvir nenhuma promessa, quero só o momento do hálito quente. Da descoberta. De conhecer aos poucos, p-a-u-l-a-t-i-n-a-m-e-n-t-e, pra não conhecer por inteiro nunca, e continuar descobrindo. Não preciso de terra firme. Nesse caso, nesse caso em particular, prefiro a sensação de queda. Pelo arrepio na espinha que dá.

Paixãozinha besta, não esperava que viesse assim tão cedo. Mas que bom, que bom que você veio.