quinta-feira, 19 de março de 2015

Roubo

- Não diga isso, meu bem...
- ...
- Te chamei de 'meu bem' sem perguntar se você tem um. Mas se tiver um, e ele te tiver, dessa forma, não me importaria em roubar pela primeira vez.
- 'A ocasião faz o ladrão'.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Urgência

Ela era feliz sim. De uma felicidade urgente, genuína e selvagem. Ela mergulhava nas madrugadas sorrindo enquanto era carregada pelo braço, ela bebia a saliva com a sede de deserto, ela beijava os olhos e os cabelos e os nós das mãos. Ela machucava os joelhos no sexo sujo do banheiro do bar, ela dormia durante toda a tarde dos domingos com a mão pousada no peito, ela sonhava com o céu aos seus pés. Ela corria pelo campo verde que era a vida a dois, corria e corria, não podia parar de correr. E de tanto correr ela chegou à beira do abismo, e deu as costas pro abismo, e deu as costas pros avisos, e deu um passo maior que a perna e caiu. E caiu e rolou pelas pedras, machucando a boca que bebia a saliva, que sorria, que beijava os olhos e os cabelos e os nós das mãos. Machucou os joelhos que machucava no sexo sujo do banheiro do bar, machucou as mãos que descansavam no peito nas tardes de domingo. Machucou o coração selvagem. Ela viu o céu aos seus pés. E caiu e caiu, e achou que nunca pararia de cair, até que uma hora parou. Lá do fundo do abismo ela viu um filete de água correndo, e seguiu a água até o ponto onde havia uma forte correnteza, onde havia um rio que corria, e ela seguiu o rio, seguiu a correnteza, e o rio foi dar no mar, e ela nadou e nadou até chegar à praia. Chegando na praia ela se deitou na areia e fitou o sol, e o sal foi fechando as feridas, as feridas da boca, da mão, dos joelhos, do coração. E ela se jogou de volta ao mar, e sentiu cada onda bater, e sentiu a urgência voltar, e a vertigem crescer. E sentiu pressa de voltar a amar. E sorriu pros banhistas, tão genuína como sempre fora, e de tempos em tempos ela voltava a mergulhar nas madrugadas enquanto era carregada, ela voltava a beber a saliva com a sede de deserto, ela voltava a machucar os joelhos no sexo sujo do bar, da praça, do chão do quarto. Ela voltava a correr pelo campo verde, ela voltava a se deparar com o abismo, ela voltava a dar um passo maior que a perna. Ela voltava a ver o céu aos seus pés. Mas ela, selvagem, seguia. E achava outro rio e nadava em outra correnteza até se curar. E seguia, pois tudo nela urgia.