quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Da estiagem

Cada noite quente é mais um convite pra rua, é mais um bar sujo, é mais um gole, é impossivel. Toda noite quente é um caminhar ébrio até a porta dele, eu nunca mais tinha feito isso, quantos meses já? Dois, três?  Quem sabe, quem lembra, quem liga? Eu chego bêbada na porta dele, eu ligo, eu interfono, eu jogo pedra na janela. Eu subo alta, tonta, como sou tonta. Eu suo por todos os poros, eu pingo suor, eu pingo desejo, eu prometo não voltar nunca mais, eu tão dele. Eu molho a cama, eu disfarço minhas lágrimas, eu rio o meu gozo, eu vou embora sorrindo minha tristeza com os cabelos encharcados de solidão. Eu conto pra Mirela. "Não acredito,  amiga, tu é burra". "Sou burra não", eu respondo, digo que a culpa é do calor, mas garanto que não volto lá,  que foi só dessa vez, não conto pra ela que vou desde a primeira vez que bateu os 30° e que volto enquanto não chover. Não falo pra ela dos choros e das cervejas e dos bares sujos, "foi de ocasião,  aconteceu, mas nunca mais, é a seca" e recolho a lágrima que teima em escorrer e olho pro céu pedindo clemência.  Não tem uma nuvem. Mando deus se foder em silêncio e peço desculpas pra minha mãe por isso, como se a culpa fosse de alguém. Culpa de belo monte, ele dizia enquanto apertava o beck e eu procurava rotas de fuga, eu odiava aquele desgraçado. "Amanhã a gente faz a dança da chuva", eu digo idiotamente. "Ou um tinder", ela responde cheia de sabedoria. Desligo o telefone resignada e mando deus se foder de novo. No dia seguinte, acordo com um temporal bíblico alagando meu apartamento e ele convidando prum filminho e edredom. Rain, I don't mind.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

por um fio


- Espera, deixa eu ver se eu entendi, você tá me pedindo pra ir embora porque tá com medo que eu te deixe, é isso?
- Isso!
- Percebe o quanto isso não faz o menor sentido?
- Nós dois nunca fizemos sentido. Mas, sabe os segundos de tremenda agonia que a gente vive quando criança, e um dente amolece, aí amarram nele um fio dental pra arrancar? Parece que eu tô vendo você olhar pra mim, segurando aquele fiozinho, pronto pra puxar a qualquer momento...
- Eu não acredito que você tá fazendo uma comparação dessas, num momento como esse. Eu não acredito que você acha que a dor da nossa separação vai ser equivalente a dor de arrancar um dente de leite. Vou fingir que nem ouvi...
- Não é isso! Eu tô falando da angustia que antecede o fim. Às vezes, é maior e mais dolorosa do que o próprio fim. Eu prefiro te arrancar de uma vez da minha vida a viver com medo. Viu como a gente não se entende? Além do mais, eu não gosto de quem eu sou quando estou com você.
- Então não seja! Apenas não seja!
- Não dá! Você desperta o pior que existe em mim. Você não entende?
- Não, eu não entendo. Não entendo você querer me culpar por suas próprias atitudes. Você me culpa por tudo, tudo!
- Bingo! É exatamente isso! Eu não quero ser uma pessoa que responsabiliza outra pelas minhas próprias atitudes. Não quero mais ser alguém que faz você se sentir tão culpado. Ou alguém que vasculha seu telefone enquanto você toma banho. Seus bolsos, sua carteira... Não quero mais viver duvidando. Sabe, às vezes, eu paro e fico me perguntando: qual será a sensação de ouvir 'hoje vou ter que trabalhar até mais tarde' e simplesmente acreditar? Simplesmente relaxar e responder 'tudo bem, amor', sem imaginar você comendo de todas as formas possíveis "a moça que faz você se lembrar o que é ser leve"?
- Mas... Eu não... Não acredito que você realmente mexeu no meu celu...
- Amor, você ainda me ama?
- Sim, mas...
- Então prova!
- Como?
- Puxa esse fio de uma vez!
- Eu... (...) Vou arrumar minhas coisas...

terça-feira, 26 de maio de 2015

profiteroles


eu estava deitada na cama comendo pizza adormecida, bebendo coca sem gás e vendo um programa muito ruim de comédia. sábado, eu completamente abandonada. só conseguia pensar em como a diversão dos meus amigos podia dar errado e eles podiam ir pra casa cedo e ficar assistindo ao mesmo programa que eu, mas sem a pizza e sem a coca. pensei em pedir uns profiteroles por telefone, mas não sei de nenhum lugar aqui nesse fim de mundo que entregue profiteroles. aliás, não sei de lugar nenhum que venda profiteroles. o que é uma pena, profiteroles for life. 


fiquei lá na minha cama e por lá fui ficando. pensei um monte de besteira, pensei em gente morta, pensei em matar gente, cortar meu cabelo, levar o carro na oficina pra fazer aquela revisão dos vinte mil que eu devia ter feito quando ele tava nos trinta mil, enfim. pensei. e pensei nele também, aquele ser humano todo grande, de mãos imensas que pegam em mim toda de uma só vez. pensei na última vez que ele teve por aqui, me trouxe uns profiteroles e a gente fez sexo selvagem e lambuzado e ele com aquela língua imensa e as mãos imensas e ele todo imenso. ah. ele tinha sumido, tava com a namorada, pensei na namorada e só de pensar já me senti pior, então preferi não pensar. fingi dar uma gargalhada de uma piada deveras sem-graça, comédia de sábado à noite, você sabe bem como é.

ele me ligou. deixei o telefone tocar umas quatro, cinco vezes. achei que ele fosse desistir, mas ele não desistiu, ele devia ter desistido de mim já fazia uns cinco anos, mas ele continuava. se ele tivesse desistido eu também desistia. resolvi atender. ele falou umas sessenta palavras em média, das quais filtrei cinco que eram realmente importantes: quero teu cheiro, porra. saudade. eu respondi: ié, babe - que é tudo que ando dizendo por agora. ele riu e falou mais umas setenta palavras sem profundidade alguma, das quais filtrei apenas as últimas: tou indo pra tua casa. antes de desligar, falei: me traz uns profiteroles. ele riu e disse: te levo outra coisa, babe.

joga pizza fora, coca sem gás pelo ralo da pia, toma banho e de repente, não mais que de repente, o sábado sem-graça se enche de glamour. ele vem. borrifa perfume no travesseiro, senta e ri feito idiota, se olha no espelho: tu não é mais adolescente, porra. controla o batimento cardíaco, não dê tão na cara, ele vai perceber. que perceba, foda-se. calcinha sexy rasgada, oh dog, a vida é ingrata e cruel. calcinha branca de algodão, ele gosta, ele gosta de mim toda e de tudo em mim. e o carro pára na frente da casa e eu abro a porta de calcinha e blusa de alcinha e ele vem me comendo toda e a gente faz sexo no corredor.

sexo no corredor for life. esqueçam os profiteroles.



(texto bem antigo, de 2007, recuperado de um blog também antigo. reaproveitamento é ecologicamente correto, né)

quinta-feira, 19 de março de 2015

Roubo

- Não diga isso, meu bem...
- ...
- Te chamei de 'meu bem' sem perguntar se você tem um. Mas se tiver um, e ele te tiver, dessa forma, não me importaria em roubar pela primeira vez.
- 'A ocasião faz o ladrão'.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Urgência

Ela era feliz sim. De uma felicidade urgente, genuína e selvagem. Ela mergulhava nas madrugadas sorrindo enquanto era carregada pelo braço, ela bebia a saliva com a sede de deserto, ela beijava os olhos e os cabelos e os nós das mãos. Ela machucava os joelhos no sexo sujo do banheiro do bar, ela dormia durante toda a tarde dos domingos com a mão pousada no peito, ela sonhava com o céu aos seus pés. Ela corria pelo campo verde que era a vida a dois, corria e corria, não podia parar de correr. E de tanto correr ela chegou à beira do abismo, e deu as costas pro abismo, e deu as costas pros avisos, e deu um passo maior que a perna e caiu. E caiu e rolou pelas pedras, machucando a boca que bebia a saliva, que sorria, que beijava os olhos e os cabelos e os nós das mãos. Machucou os joelhos que machucava no sexo sujo do banheiro do bar, machucou as mãos que descansavam no peito nas tardes de domingo. Machucou o coração selvagem. Ela viu o céu aos seus pés. E caiu e caiu, e achou que nunca pararia de cair, até que uma hora parou. Lá do fundo do abismo ela viu um filete de água correndo, e seguiu a água até o ponto onde havia uma forte correnteza, onde havia um rio que corria, e ela seguiu o rio, seguiu a correnteza, e o rio foi dar no mar, e ela nadou e nadou até chegar à praia. Chegando na praia ela se deitou na areia e fitou o sol, e o sal foi fechando as feridas, as feridas da boca, da mão, dos joelhos, do coração. E ela se jogou de volta ao mar, e sentiu cada onda bater, e sentiu a urgência voltar, e a vertigem crescer. E sentiu pressa de voltar a amar. E sorriu pros banhistas, tão genuína como sempre fora, e de tempos em tempos ela voltava a mergulhar nas madrugadas enquanto era carregada, ela voltava a beber a saliva com a sede de deserto, ela voltava a machucar os joelhos no sexo sujo do bar, da praça, do chão do quarto. Ela voltava a correr pelo campo verde, ela voltava a se deparar com o abismo, ela voltava a dar um passo maior que a perna. Ela voltava a ver o céu aos seus pés. Mas ela, selvagem, seguia. E achava outro rio e nadava em outra correnteza até se curar. E seguia, pois tudo nela urgia.