sábado, 1 de junho de 2013

Repartição

Era um moço bem moço. Trabalhava como mensageiro de uma empresa terceirizada que prestava serviço pra várias repartições públicas. Era sozinho – mas sozinho mesmo, de uma solidão de dar dó. Não tinha família, amigos nem bichos de estimação. Era um moço bem moço e bem só, que parecia carregar consigo uma gravidade mais que pesada que o próprio peso. Era curvado, branco e frio. Normalmente ele não falava com ninguém quando chegava, só entregava o que tinha de entregar e partia. Mas aí ele começou a mudar quando a outra mulher chegou.
A outra mulher era a nova diretora da repartição. Ninguém gostava muito dela, mas ela parecia gostar bastante de si mesma pra se importar com isso. Era vaidosa, altiva e bastante egoísta. Mas o moço bem moço que vinha deixar correspondência pra ela parecia ver uma fada sempre que chegava. Parecia ser salvo sempre que a via. Eu não entendia. Eu tentava trocar uma ou duas palavrinhas com ele mas ele nunca olhava pra mim, então nunca podia ver meu sorriso – ele tinha olhos só pra ela. Ele entrava, entregava a documentação dela, parava ao meu lado pra tomar um copo d'água, ignorava meu sorriso e ia embora, sempre olhando pra ela, e com uma fome que eu nunca vi em olhar nenhum.
Com o passar do tempo a gravidade dele foi se esvaindo, dando lugar a um moço ainda mais moço. Jovial, sorridente, ereto e quente. Mas era tudo só pra ela. Eu percebi isso quando ela tirou férias. Ele voltou a ser o mensageiro macambúzio que as outras pessoas riam quando ele saía da sala. O moço alegre voltou quando ela também voltou, mas ela parecia não perceber. Ninguém ali parecia perceber, além de mim. E um dia fui ter com ela, e perguntei se ela tinha ideia do efeito que causava no rapaz. Ao que ela respondeu com uma risada fria. Só isso, uma risada fria, e voltou ao que fazia, me deixando ali feito boba.
Desde então eu tentei de todas as formas atrair a atenção dele para o fato de que ela não se importava, mas ele nunca me olhava. Até que um dia eu o segui, consegui pegá-lo ainda na escada, e disse “sabe, essa mulher por quem você é apaixonado, ela não liga”. Ele me olhou sem me ver, disse que não sabia do que eu estava falando e retomou a descida das escadas, sem olhar pra trás. Depois desse dia, todas as vezes que eu tentava ter com ele eram fadadas ao fracasso. Mas eu insisti. E da última vez que tentei, ele segurou com força meu braço e disse que ela seria dele e eu não podia fazer nada pra impedir, que ele já tinha percebido que eu o amava mas ele não me amava e que devia deixá-lo em paz. Me assustei. E deixei pra lá.
Até que chegou o final do ano. Faltavam algumas semanas pro réveillon quando ele me procurou na repartição. Pediu desculpa pela forma que havia me tratado e disse que eu ficaria feliz em saber que ele passaria a virada de ano com ela. Nesse momento ela passou, ignorando completamente qualquer ser ao redor, incluindo a mim e ao moço. Olhei pra ele com curiosidade e interesse. “Como é possível que ela passe a virada do ano com você se ela sequer considera sua existência?”, perguntei. Ele riu e disse que já havia tomado conta de tudo. Eu, que havia decidido desistir, apenas passei a ele meu telefone e pedi que me ligasse caso algo desse errado, mas que eu torcia pra que fosse uma noite ótima. Ele me abraçou e foi-se.
Fui passar as festas no interior com minha família, mas não tirei o moço da cabeça. Me arrependi de não ter pedido o celular dele pra poder pelo menos sondar. E percebi que meu maior medo era, na verdade, que eles realmente estivessem vivendo um affair, e ela por ser daquele jeito não quisesse demonstrar pros funcionários. Porque uma mulher como ela não se envolveria com um mensageiro – não quando tem convites pra jantar com o chefe da repartição.
Na festa de réveillon quase não me diverti, pensando no moço todo o tempo. Até os imaginei, os dois de branco, com uma taça de champagne, brindado àquele amor que nascia junto com o ano. Fiquei num canto escondido e chorei a festa inteira. Quer dizer, eu entendia o fascínio que ela exercia sobre ele, afinal ela era uma mulher, linda, bem-sucedida, enquanto eu era só uma moça bem moça, que nem ele, que passou a vida no canto, sem ser percebida.
Mas meu celular tocou no momento da contagem regressiva. Havia uma mensagem de um número desconhecido. Era ele. “Ela não pareceu feliz em me ver na casa dela, mesmo com a ceia pronta, as velas acesas e um bom champagne. Então tive de convencê-la a ficar”. Um frio percorreu minha espinha. Não sabia o que ele queria dizer com isso, então liguei. Mas a ligação não completou. Tentei de novo, falhou de novo. Enquanto discava os números pela terceira vez, tremendo, chegou uma foto. Ela estava amordaçada, amarrada à cadeira, com os olhos inchados de apanhar e o nariz sangrando. Ele estava ao lado dela. Feliz. Ele estava feliz.
Me desesperei. Liguei de novo, a ligação completou mas ele não atendeu. Mandei uma mensagem pedindo que ele a libertasse, passei meu endereço caso ele quisesse ter um lugar pra pensar antes de decidir que decisão tomar, mas que ele precisava sair da casa dela imediatamente. Ele respondeu que estava com a mulher que amava no exato lugar em que devia estar. Então eu entendi o processo dele. Pedi o endereço pra fazer uma visita de cortesia, como amiga, pra celebrar o amor dos dois. Ele me passou. Peguei o carro. Mais de uma hora de viagem, mas algum dano maior podia ser evitado.
Durante a viagem me perguntei o porquê de estar agindo dessa forma, dirigindo na madrugada pra socorrer alguém assim. É certo que eu gostava desse moço, mas não era certo o que ele estava fazendo, e tampouco era certo eu tentar ajudá-lo. Eu podia simplesmente ter avisado à polícia e ver o que acontecia. Mas percebi que, na verdade, estava feliz por esse romance ser apenas um delírio dele. Por ele ser louco de achar que uma mulher ficaria com ele. Ainda que isso significasse cárcere privado e agressão, eu estava feliz por saber que ele uma hora ia perceber isso e ia sofrer. E eu estaria lá por ele.
Quando cheguei não acreditei no que via. A mesa posta, as velas acesas, as bebidas. Tudo tão cuidadosamente preparado por ele. Ela continuava amarrada à cadeira, desacordada, sangrando. Ele cantarolava de algum outro cômodo. Percorri a casa e fui encontrá-lo na cozinha. Ele pareceu extremamente incomodado em me ver. Expliquei que tinha ido até lá porque a festa que eu estava já tinha acabado e eu queria me divertir. Ele não acreditou, mas não disse mais nada. Me levou pela mão até a sala de jantar. No chão, perto da cadeira onde a mulher estava sentada, vi um martelo de moer carne ao lado de um celular destruído. “O namorado dela não parava de ligar”, ele explicou. “Mas nós tivemos uma conversinha sobre isso, né, meu amor?”, ele perguntou a ela, que havia acordado. Ela me olhou com completo horror no olhos, começou a se debater tentando sair da cadeira. Eu pedi a ele pra tirar a mordaça dela. Ele disse que não podia, ela ia voltar a gritar, eu pedi por favor, fiz ela prometer que não gritaria, ela indicou com a cabeça que não o faria, ele tirou o pano. Ela, obviamente, gritou. Ele ficou desesperado, pediu a ela que pelo amor de deus parasse, que os vizinhos iam aparecer e iam estragar a noite deles, que ele tinha planejado tudo, que era pra ser tudo perfeito. Ela continuou gritando. Peguei o martelo e bati na cabeça dela com toda a força que pude acumular. Ele me olhou aterrorizado. Veio pra cima de mim, e percebi que ele nem era tão moço assim. Dei com o martelo na cabeça dele também. Uma, duas, cinco vezes. O sangue dele cobriu meus braços, meu rosto. Limpei com a toalha alvíssima da mesa. Apaguei as velas. Peguei uma coxa particularmente gorda do peru e saí pela porta dos fundos. Um vizinho olhava pela cerca. Desejei a ele um feliz ano-novo e ganhei a rua. Ainda havia fogos, a noite estava bonita, então parei pra olhar. Ouvi as sirenes ao longe, misturadas ao barulho dos fogos de artifício. Parecia música.

Parecia música.