segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Old Love


Ela acordou naquela manhã fria e imediatamente quis dormir de novo. Tivera uma noite terrível, e o ritmo preguiçoso do feriado junto do final de semana não ajudaria na tarefa de começar a semana.

Era a semana de aniversário. Ela não era grande fã de aniversário, tanto por não se sentir mais sábia ao longo dos anos quanto pela perda do primeiro amor em uma de suas vésperas. O aniversário era basicamente o fim do inferno astral, nada digno de nota, e ela preferia encarar assim.

Por ser segunda ela já sabia que seria um dia inevitavelmente ruim, mas aquela era uma segunda diferente, e ela soube no momento em que tentou se levantar da cama, pois havia um peso novo dentro dela, no fundo da garganta. Uma coisa assim antiga, mofada, morta. Ou que ela pensava estar morta, pois estava ali bem viva dificultando a respiração. Tentou entender o que acontecia e seu corpo todo enrijeceu de medo. Lembrou com clareza da última vez que se sentira assim, e já fazia tantos anos que não parecia possível. Tanta água já tinha corrido, de uma correnteza tão violenta, que ela tinha certeza de que o menor fragmento restante tinha sido levado junto com tantas outras dores. Mas não, ela sabia que não. Estava ali, viva e cristalina, a saudade de um amor morto.

Morto. Mas um dos amores mais bonitos que ela viveu, ali pelo início da década passada (deus, que história antiga! - ela repetia pra si mesma). Namoraram por quase dois anos, um amor fresco, cheio de brisa, cheio de descoberta. Antes de namorados eram melhores amigos, e conheciam tão intimamente um do outro que era praticamente impossível que errassem. Ela lembrou desse detalhe com um certo pesar – o relacionamento posterior durou quase o dobro, mas deve ter tido metade da felicidade e uma quantidade infinitamente maior de lágrima e dor.

Ela tinha seus 19 e ele já 32 anos. Vinha apaixonada por ele há alguns meses, mas não sabia se era recíproco e não quis arriscar, afinal ele era seu melhor amigo. E era desses caras assim, facilmente apaixonáveis: bonito – de olhos escandalosamente verdes, inteligente, sensível, educado, simpático à causa feminista (o que já era deveras importante pra ela à época). Pilotava uma moto da cor preferida dela, era músico e jogava xadrez. Quando ele a pediu em namoro ela tinha a absoluta certeza de que ali era o início do fim dela, e que o fim dela era ele. Não queriam filhos, não queriam casamento, queriam morar fora do país e amavam cachorros. E eram completamente tarados um pelo outro – chegaram a ser indiscretos em algumas ocasiões sociais, mas era um cio interminável. Faziam sexo o tempo todo, conversavam sobre tudo o tempo todo, ouviam Beatles todos os dias, bebiam feito loucos e foram felizes feito loucos, o tempo todo. Nada com ele era difícil – nem a relação conflituosa que ela tinha com a família, nem a morte prematura e traumática do primeiro amor dela, nada era um obstáculo, nada era um enigma. Viveram uma relação tão madura pra idade dela, sem grandes brigas, sem grandes percalços, baseada numa confiança sem reservas e num amor que só crescia, que por vezes ela custava a acreditar que era real. E quando ela duvidava ele fazia questão de transformar a dúvida numa realidade tão palpável, tão intensa e desejável, que ela se sentia grata pela certeza que ele plantava no coração dela.

Até que ele mudou. De uma hora pra outra, sem motivo aparente, ele mudou. Quase não conversavam mais, ele estava ausente a maior parte do tempo, o sexo esfriou, ele simplesmente mudou. Não durou um mês, mas ela não quis esperar. Não quis pagar pra ver. Se achava tão madura, tão especial, tão auto-suficiente, que não tinha porque esperar por ele voltar. Ou batalhar para tê-lo de volta (se ela pudesse imaginar do que seria capaz mais à frente...). Tentou conversar uma vez, se muito, e como não obteve resposta, simplesmente resolveu partir.

A partir daí, tudo que era absolutamente especial entre eles adquiriu um aspecto turvo, e chegou ao ponto de parecer que sequer se conheciam. Meses depois ele a encarou e disse que havia errado, que tinha cometido esse erro e que esse erro foi responsável por fazê-lo mudar, porque ele não tinha condições de encará-la, não tendo feito o que fez. Mas que ele sabia de quem era a culpa pelo fim, e estaria disposto a carregá-la por quanto tempo fosse preciso, porque ele sabia o que esse erro custaria, e era um preço muito alto a se pagar. Ela ouviu num misto de alívio e ódio, pois se arrependera de ter partido sem lutar, mas por ouvir sem ouvir de verdade ela só maximizou esse erro pra se livrar da culpa. Ela, menina que se achava mulher, não soube perdoar. E desde então eles nunca mais conversaram como antes, e brigaram como nunca, e se perderam completamente no processo de assassinar o que sentiam um pelo outro. Ela nunca olhou pra trás, nem uma única vez, nem mesmo quando foi correndo ao hospital sem saber se ele estava vivo ou não. Ela matou o que sentia ali e decidiu se transformar em viúva de alguém que ainda vivia.

Ela encarou orgulhosa uma viuvez de quatro longos anos. Tinha a certeza de jamais viveria um amor como aquele, e de fato não viveu, e não queria se arriscar a perder tudo de novo, o que aconteceu de maneira ainda mais violenta anos depois. E se achando segura ela abriu mão de seu luto feroz, e permitiu a invasão alheia que viria a devastá-la sem precedentes. E vivendo um novo luto ela se agarrou à certeza de que tinha tanta morte dentro dela que isso impossibilitaria o renascimento de qualquer coisa que já tivera vida.

Desde então, desde o momento em que abandonou sua mortalha e se permitiu amar e ser amada por outra pessoa, ela nunca mais experimentou esse tipo de saudade. Nem quando seu relacionamento posterior ia se transformando lentamente no maior erro de sua vida. Ela mal lembrava da última vez em que estiveram diante um do outro e tiveram uma conversa decente, seis anos atrás. A última vez que se falaram, numa ligação à distância cheia de falsas promessas e mágoa, tinha sido há mais de quatro anos. Nunca mais havia pensado nele, nos olhos escandalosamente verdes e no cheiro do xampu que ele usava nos cabelos longos, na tatuagem de pássaro negro em homenagem à canção preferida dele que também era a dela. Tudo tinha ficado no campo do esquecimento.

Trazer à tona, de volta à vida, algo há tanto enterrado, e enterrado tão profundamente, não foi um processo simples pra ela: se sentiu pesada e assustada no decorrer do dia. Tentou ignorar o nó na garganta e falhou. Tentou situar as lembranças no campo da memória sem importância e também falhou. Experimentou o gosto que tem o arrependimento guardado por quase dez anos e engasgou, pois era amargo e cruel. Mas ela não chorou. Nem se torturou, tampouco. Ignorou o conselho da amiga que disse para procurá-lo. Ela não era mais a mesma, ele certamente não é mais o mesmo. Ela imaginou, claro, como seria se por acaso tivesse perdoado aquele deslize menor, e talvez ainda estivem juntos e felizes, e talvez ela tivesse vivido várias outras coisas. Mas ela ali, à distância, vislumbrou a possibilidade rica e serena que deixou passar, e se despediu dela sabendo quem ela era. Sem dor. No fim do dia se comprometeu a, dali pra frente, estar mais atenta aos sinais. E ouviu Eric Clapton até sangrar.

Old love, leave me alone
Old love, just go on home

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Indelével

adj.
Que não se pode apagar ou desaparecer

Acredito que quase, quase tudo na vida é superável. Superamos a dor, a perda, o engano, a morte. Quase tudo. Acho que a única coisa que eu não superaria seria a perda da minha mãe, por exemplo. De resto...perdemos trabalhos, tempo, amigos, e vamos superando e continuamos a viver. E dá pra viver uma vida cheia e verdadeira, mesmo com todas essas perdas, mesmo com a energia que se despende pra superar as coisas.

Mas falemos de amores.

Amei três vezes na vida. Ao fim de cada amor, achei que fosse morrer, porque tudo em mim doía a maior dor do mundo e eu achei que nunca ia ter fim. E chorei e sequei, mas nem morri. E as dores foram passando, a cicatriz fechando e eu fui voltando aos poucos à vida. Daí depois de um tempo eu me apaixonava de novo, e desapaixonava e seguia, até cruzar novamente com o tal do amor. E superei meus três amores mortos, e sei que posso superar os outros que virão, caso morram.

Mas, sabe o que é? Cicatriz fecha, mas não sai. Cada amor morto deixou uma marca impossível de ser removida. E às vezes, no silêncio da hora mais escura, aquela hora em que faz mais frio, a marca dói. E não dói pelos amores já mortos, não dói pelo que se perdeu ou pelo tanto que se deixou de acreditar. Dói porque é uma coisa ainda viva, esquecida, mas viva dentro da gente. E vem assim, sem menos nem mais, num átimo, porque é viva.

Não tenho medo dessas dores.

Não mais. Não me provocam nostalgia, e se me arrancam lágrimas não é pelo que podia ter sido e não foi (obrigada, Bandeira). São só dores, latentes, esperando uma brecha pra voltarem. E a gente nem consegue controlar porque a maior parte do tempo elas não anunciam o golpe. O golpe vem seco e a gente sente. Daí enxuga a lágrima e, um segundo depois, esquece. Mas ela tá lá. E sempre estará. Ninguém nunca vai saber. Ninguém nunca vai olhar pra você e perguntar: “o que é esse corte aqui?” e você vai responder “foi um amor que morreu”. Não se pode enxergar. Nem remover. Mas se pode inspirar.

sábado, 1 de junho de 2013

Repartição

Era um moço bem moço. Trabalhava como mensageiro de uma empresa terceirizada que prestava serviço pra várias repartições públicas. Era sozinho – mas sozinho mesmo, de uma solidão de dar dó. Não tinha família, amigos nem bichos de estimação. Era um moço bem moço e bem só, que parecia carregar consigo uma gravidade mais que pesada que o próprio peso. Era curvado, branco e frio. Normalmente ele não falava com ninguém quando chegava, só entregava o que tinha de entregar e partia. Mas aí ele começou a mudar quando a outra mulher chegou.
A outra mulher era a nova diretora da repartição. Ninguém gostava muito dela, mas ela parecia gostar bastante de si mesma pra se importar com isso. Era vaidosa, altiva e bastante egoísta. Mas o moço bem moço que vinha deixar correspondência pra ela parecia ver uma fada sempre que chegava. Parecia ser salvo sempre que a via. Eu não entendia. Eu tentava trocar uma ou duas palavrinhas com ele mas ele nunca olhava pra mim, então nunca podia ver meu sorriso – ele tinha olhos só pra ela. Ele entrava, entregava a documentação dela, parava ao meu lado pra tomar um copo d'água, ignorava meu sorriso e ia embora, sempre olhando pra ela, e com uma fome que eu nunca vi em olhar nenhum.
Com o passar do tempo a gravidade dele foi se esvaindo, dando lugar a um moço ainda mais moço. Jovial, sorridente, ereto e quente. Mas era tudo só pra ela. Eu percebi isso quando ela tirou férias. Ele voltou a ser o mensageiro macambúzio que as outras pessoas riam quando ele saía da sala. O moço alegre voltou quando ela também voltou, mas ela parecia não perceber. Ninguém ali parecia perceber, além de mim. E um dia fui ter com ela, e perguntei se ela tinha ideia do efeito que causava no rapaz. Ao que ela respondeu com uma risada fria. Só isso, uma risada fria, e voltou ao que fazia, me deixando ali feito boba.
Desde então eu tentei de todas as formas atrair a atenção dele para o fato de que ela não se importava, mas ele nunca me olhava. Até que um dia eu o segui, consegui pegá-lo ainda na escada, e disse “sabe, essa mulher por quem você é apaixonado, ela não liga”. Ele me olhou sem me ver, disse que não sabia do que eu estava falando e retomou a descida das escadas, sem olhar pra trás. Depois desse dia, todas as vezes que eu tentava ter com ele eram fadadas ao fracasso. Mas eu insisti. E da última vez que tentei, ele segurou com força meu braço e disse que ela seria dele e eu não podia fazer nada pra impedir, que ele já tinha percebido que eu o amava mas ele não me amava e que devia deixá-lo em paz. Me assustei. E deixei pra lá.
Até que chegou o final do ano. Faltavam algumas semanas pro réveillon quando ele me procurou na repartição. Pediu desculpa pela forma que havia me tratado e disse que eu ficaria feliz em saber que ele passaria a virada de ano com ela. Nesse momento ela passou, ignorando completamente qualquer ser ao redor, incluindo a mim e ao moço. Olhei pra ele com curiosidade e interesse. “Como é possível que ela passe a virada do ano com você se ela sequer considera sua existência?”, perguntei. Ele riu e disse que já havia tomado conta de tudo. Eu, que havia decidido desistir, apenas passei a ele meu telefone e pedi que me ligasse caso algo desse errado, mas que eu torcia pra que fosse uma noite ótima. Ele me abraçou e foi-se.
Fui passar as festas no interior com minha família, mas não tirei o moço da cabeça. Me arrependi de não ter pedido o celular dele pra poder pelo menos sondar. E percebi que meu maior medo era, na verdade, que eles realmente estivessem vivendo um affair, e ela por ser daquele jeito não quisesse demonstrar pros funcionários. Porque uma mulher como ela não se envolveria com um mensageiro – não quando tem convites pra jantar com o chefe da repartição.
Na festa de réveillon quase não me diverti, pensando no moço todo o tempo. Até os imaginei, os dois de branco, com uma taça de champagne, brindado àquele amor que nascia junto com o ano. Fiquei num canto escondido e chorei a festa inteira. Quer dizer, eu entendia o fascínio que ela exercia sobre ele, afinal ela era uma mulher, linda, bem-sucedida, enquanto eu era só uma moça bem moça, que nem ele, que passou a vida no canto, sem ser percebida.
Mas meu celular tocou no momento da contagem regressiva. Havia uma mensagem de um número desconhecido. Era ele. “Ela não pareceu feliz em me ver na casa dela, mesmo com a ceia pronta, as velas acesas e um bom champagne. Então tive de convencê-la a ficar”. Um frio percorreu minha espinha. Não sabia o que ele queria dizer com isso, então liguei. Mas a ligação não completou. Tentei de novo, falhou de novo. Enquanto discava os números pela terceira vez, tremendo, chegou uma foto. Ela estava amordaçada, amarrada à cadeira, com os olhos inchados de apanhar e o nariz sangrando. Ele estava ao lado dela. Feliz. Ele estava feliz.
Me desesperei. Liguei de novo, a ligação completou mas ele não atendeu. Mandei uma mensagem pedindo que ele a libertasse, passei meu endereço caso ele quisesse ter um lugar pra pensar antes de decidir que decisão tomar, mas que ele precisava sair da casa dela imediatamente. Ele respondeu que estava com a mulher que amava no exato lugar em que devia estar. Então eu entendi o processo dele. Pedi o endereço pra fazer uma visita de cortesia, como amiga, pra celebrar o amor dos dois. Ele me passou. Peguei o carro. Mais de uma hora de viagem, mas algum dano maior podia ser evitado.
Durante a viagem me perguntei o porquê de estar agindo dessa forma, dirigindo na madrugada pra socorrer alguém assim. É certo que eu gostava desse moço, mas não era certo o que ele estava fazendo, e tampouco era certo eu tentar ajudá-lo. Eu podia simplesmente ter avisado à polícia e ver o que acontecia. Mas percebi que, na verdade, estava feliz por esse romance ser apenas um delírio dele. Por ele ser louco de achar que uma mulher ficaria com ele. Ainda que isso significasse cárcere privado e agressão, eu estava feliz por saber que ele uma hora ia perceber isso e ia sofrer. E eu estaria lá por ele.
Quando cheguei não acreditei no que via. A mesa posta, as velas acesas, as bebidas. Tudo tão cuidadosamente preparado por ele. Ela continuava amarrada à cadeira, desacordada, sangrando. Ele cantarolava de algum outro cômodo. Percorri a casa e fui encontrá-lo na cozinha. Ele pareceu extremamente incomodado em me ver. Expliquei que tinha ido até lá porque a festa que eu estava já tinha acabado e eu queria me divertir. Ele não acreditou, mas não disse mais nada. Me levou pela mão até a sala de jantar. No chão, perto da cadeira onde a mulher estava sentada, vi um martelo de moer carne ao lado de um celular destruído. “O namorado dela não parava de ligar”, ele explicou. “Mas nós tivemos uma conversinha sobre isso, né, meu amor?”, ele perguntou a ela, que havia acordado. Ela me olhou com completo horror no olhos, começou a se debater tentando sair da cadeira. Eu pedi a ele pra tirar a mordaça dela. Ele disse que não podia, ela ia voltar a gritar, eu pedi por favor, fiz ela prometer que não gritaria, ela indicou com a cabeça que não o faria, ele tirou o pano. Ela, obviamente, gritou. Ele ficou desesperado, pediu a ela que pelo amor de deus parasse, que os vizinhos iam aparecer e iam estragar a noite deles, que ele tinha planejado tudo, que era pra ser tudo perfeito. Ela continuou gritando. Peguei o martelo e bati na cabeça dela com toda a força que pude acumular. Ele me olhou aterrorizado. Veio pra cima de mim, e percebi que ele nem era tão moço assim. Dei com o martelo na cabeça dele também. Uma, duas, cinco vezes. O sangue dele cobriu meus braços, meu rosto. Limpei com a toalha alvíssima da mesa. Apaguei as velas. Peguei uma coxa particularmente gorda do peru e saí pela porta dos fundos. Um vizinho olhava pela cerca. Desejei a ele um feliz ano-novo e ganhei a rua. Ainda havia fogos, a noite estava bonita, então parei pra olhar. Ouvi as sirenes ao longe, misturadas ao barulho dos fogos de artifício. Parecia música.

Parecia música.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Ritual


Toda sexta-feira ele desaparecia. Não atendia celular, os amigos que eu ainda tinha coragem de ligar nunca sabiam dele, ele simplesmente sumia. No início ele me dizia que tinha ficado preso no escritório, que o pneu furou e ele tava sem bateria pra chamar o seguro, depois de um tempo era tanta desculpa estapafúrdia que eu simplesmente deixei de acreditar. Eu sabia o que ele fazia – não sabia onde, nem com quem – mas sabia o que ele andava a aprontar. E toda sexta-feira eu derretia de ódio. Sentia ódio dele em todos os poros do meu corpo. Era medonho. Eu tinha febre, e cerrava os dentes, e não dormia, e chorava, e começava a imaginá-lo morto. Morto. E eu imaginava a morte dele bem lenta e com muita dor, e ele me pedia perdão com os olhos vidrados de desespero e aquilo me dava um prazer aterrorizante. A essa altura eu já o tinha matado empalado, queimado, envenenado, mutilado, atropelado, crucificado. Cada sexta-feira era uma morte diferente, e às vezes eu fazia umas pesquisas durante a semana, pra garantir que opções não faltariam. E ficava lá, na cama, comendo cigarros, os olhos inchados de dor e mágoa, saboreando cada detalhe da morte dele.

Mas aí, no sábado de manhã, no sábado de manhã ele chegava, cheirando a álcool e penteadeira de puta, e me abraçava e pedia perdão. E chorava, e dizia que não mais faria aquilo comigo, que não era justo, e pelamordedeus me perdoa, e eu dizia que tava cansada, que aquilo não dava mais pra mim, e ele enfiava a cabeça no meio das minhas coxas e eu gemia e chorava e gemia. Aí ele me deitava na cama e me penetrava com tanto cuidado que o ódio ia embora, aos pouquinhos, devagarzinho, e ele lambia meu mamilo e pedia perdão, e eu perdoava e sorria, e aí ele acelerava, o ódio ia voltando à medida que ele também ia acelerando, e quanto mais rápido ele me fodia mais rápido o ódio voltava, aí eu explodia em gozo e raiva, e chorava e chorava e chorava. Ele se limpava com o lençol, virava pro lado e imediatamente começava a roncar. E eu, chorando chorando chorando, ia pro banheiro, tomava um banho quente e eterno, até a raiva passar, até eu conseguir enxergar de novo, e ia embora pra casa da minha mãe. Todo sábado de manhã era isso. Todo sábado, há anos, era assim.

No domingo à noite eu voltava pra casa e ele me levava pra jantar. E nunca conversávamos sobre o que acontecia toda sexta à noite e todo sábado de manhã. Nunca conversávamos sobre nada. Ele me falava sobre a expectativa dos negócios da semana, xingava minha mãe, falava dos passeios com o cachorro. E eu ficava calada olhando pra ele, imaginando se ia doer se eu enfiasse a faca de mesa no ouvido dele ali mesmo, naquela bosta de restaurante chinês que ele me levava todo domingo. Depois ele me levava pra melhor suíte do melhor hotel da cidade e pedia champanhe e a cama estava coberta de rosas e a gente trepava por horas e horas e eu sentia tudo ao mesmo tempo, amor e ódio, e às vezes eu apertava o pescoço dele com um pouco mais de força, só pra saber como seria se eu o matasse, e ele gostava, e cada vez que eu apertava mais o pescoço ele se contorcia todo, e pedia mais e mais e eu apertava mais e mais. Depois a gente gozava junto e caía cada um pra um lado da cama, e se olhava pelo espelho, ele ria e dizia que me amava, e eu segurando a lágrima respondia que o amava também, aí ele fazia cócegas na minha barriga e a gente ia pro banho junto e quando via já era quase segunda e já era hora de voltar à vida. Era o nosso ritual.

Aí veio uma sexta que ele não saiu. Chegou cedo em casa, nem tinha jantar porque na sexta eu liberava a Rosa mais cedo, sabendo que ele não vinha, mas nessa sexta ele veio do trabalho direto pra casa. Pediu uma pizza, assistiu ao jornal e lá pelas dez tava dormindo. Acordou cedo no sábado, cuidou do jardim e do criadouro dos cachorros, fez almoço, à tarde foi pra rua comprar coisas pra casa e voltou com pipoca, sorvete e Dirty Dancing. Assistimos ao filme juntos, ao final imitamos a coreografia, ele fez as vezes de Patrick Swayze e depois nos deitamos abraçados, e ele me beijava com calma e bem devagar, a noite inteira, como há muito não nos beijávamos, e ele me olhava como há muito não me olhava mais, e cheirava meus cabelos e dizia que me amava muito, tanto e como. No domingo fomos almoçar na casa da minha mãe, de lá passamos num parque de diversões, ele não me levou na porcaria do chinês, voltamos pra casa e, já na cama, ele me contou que tinha percebido o que vinha fazendo, e o quanto me fazia sofrer, e como ele arriscou à toa, por todos esses anos, me perder. Que isso ia acabar, ia parar, que toda sexta-feira ele estaria lá pra dar boa-noite pro William Bonner e seríamos um casal exemplar e de causar inveja nos outros casais.

Eu sorri. Sorri e disse a ele que não queria vê-lo em casa sexta à noite, que não o queria acordado sábado de manhã aparando o jardim, ou indo aos almoços de domingo na casa da minha mãe. Que mesmo que ele não me traísse mais, que ele arranjasse o que fazer na sexta, que eu o queria bêbado no sábado pela manhã, transando comigo como se fosse morrer, e agindo como se nada tivesse acontecido o resto do final de semana. A única exigência que fiz foi excluir definitivamente aquele chinês de merda da nossa vida. Mas expliquei que, embora eu sofresse muito em todos os finais de semana, só assim eu me sentia viva. Que não queria o que a gente já tinha de segunda à quinta, queria aquela loucura e paixão e perdição daqueles três dias porque era a melhor parte dele que eu tinha. Ele me olhou petrificado, tentou balbuciar que nunca havia me traído, falou que isso não era coisa de gente normal, que ninguém pode ser feliz vivendo assim, mas eu mantive minha posição. Expliquei que casada eu já era, com a Rosa, que era quem me ouvia reclamar, quem me auxiliava nas contas, quem via a novela comigo e tudo isso. Isso já era um casamento perfeito e isso eu já tinha, e obviamente jamais seria com ele, porque ele não era assim, ele era vadio e eu sabia, sempre soube, e foi ali que eu vi meu coração a primeira vez e era ali que eu queria ver meu coração pra sempre. Eu disse pra ele que, feliz, aceitava a condição. Era a minha escolha. Se ele quisesse emular um casamento perfeito, que fizesse sua trouxa de roupa e fosse embora atrás de outra mulher, que eu preferia imaginá-lo morto toda sexta feira a ter real vontade de matá-lo logo na segunda pela manhã.

Na sexta seguinte, já passando das três da manhã de sábado, ele me mandou uma mensagem dizendo que o pneu tinha furado e ia dormir na casa de um amigo, mas no sábado de manhã voltava pra casa. Sorri conformada, vesti minha melhor lingerie e esperei ele voltar. Ele chegou oito da manhã, bêbado e roto, eu gozei e chorei e sorri e fiz todo meu ritual. Depois do banho voltei pra cama e fiquei olhando pra ele, até pegar no sono, imaginando uma morte diferente das que eu já tinha imaginado. E ele ainda dormindo procurou minhas coxas, repousou sua mão e me chamou pelo nome. E eu chorei de ódio, feliz da vida, com o coração no lugar.

domingo, 12 de maio de 2013

Da descoberta

Texto sincerista


Eu sabia. No fundo eu sabia que se eu fizesse isso, se eu atravessasse essa ponte que me levava até aquele lugar, eu sabia o que aconteceria. Mas eu pisei firme. Encarei mesmo, pensando que se o risco era esse, que fosse. Ia valer a pena. Por mim, nem sei se pela outra pessoa, mas por mim mesmo. Fazer isso por mim. Me dar essa chance.

E aí eu acordei. E tudo que vinha dormindo em mim acordou também. Sabia que não tinha morrido, essas coisas nunca morrem. Esse arrepio, a dúvida de saber como será quando estiver por perto, esse stalkear fajuto nas redes sociais. Acordou e não acordou como um monstro - acordou sereno. Sorrindo.E é bom.

Esse início de paixão. Essa coisa que a gente sabe exatamente onde termina, porque não tem mesmo pra onde ir. Mas a gente se permite viver isso porque, ora, é bom. É bom se reconhecer em outra pessoa. Sem aquilo de se sentir completa, só se reconhecer mesmo. Já estive partida, vivi partida por muitos anos, e terminei em pedacinhos. Quero isso de novo não. Quero o que eu tenho agora, esse conta-gotas, esse imaginar como seria, se pudesse ser. Esse se perguntar se é isso mesmo, se a intenção é essa, se é tão claro pra ele e pros outros como é pra mim. De imaginar que tudo é cifrado e ele diz uma coisa querendo dizer outra. Se o desejo dele é gêmeo do meu. Cansei de amor louco. Quero só essa paixãozinha fajuta pra me tirar o ar vez em quando, pra eu beber só quando der sede, se der sede. Não quero a urgência, prefiro essa espera, a doce espera pelo estar junto de novo, se assim caminharmos pra isso. Quero esse rubor ao acordar do sonho sem querer acordar. Essa coisa que queima devagar, sem pressa, que vai se acostumando ao fogo que lambe aos pouquinhos. Não quero a dúvida de saber onde anda e com quem anda, o que faz ou deixa de fazer. Prefiro não ouvir nenhuma promessa, quero só o momento do hálito quente. Da descoberta. De conhecer aos poucos, p-a-u-l-a-t-i-n-a-m-e-n-t-e, pra não conhecer por inteiro nunca, e continuar descobrindo. Não preciso de terra firme. Nesse caso, nesse caso em particular, prefiro a sensação de queda. Pelo arrepio na espinha que dá.

Paixãozinha besta, não esperava que viesse assim tão cedo. Mas que bom, que bom que você veio.