sábado, 10 de março de 2012

O elogio do tarado



Toda mulher quer, precisa e merece uma boa dose de taradice 0800 do seu compañero. É o olhar canalha que se dá ao desabotoar o sutiã com destreza, é a imoralidade dita no pé d’ouvido, é a mordiscada dadas nos bicos e juntas da fêmea, é o vap-vap sem pudor. Não fazemos mais que nosso dever cívico/cínico.

Sim, falo de cinismo ao se convidar para um sorvete geladíssimo com as intenções de, no final, convencer a querida a esquentar la vida y corazón. Toda dama – não, como diria Nelson Rodrigues, ‘só as normais’ – almeja roçadas na nuca, beijos com olhos fechados, dentadas egoístas, mãos hermeticamente encaixadas nos quadris.

O cabra macho joxó valoriza o gosto que lambuza a boca e infesta as narinas. Não tem a frescura do ‘isso aqui é ruim’. Pena dá daquelas donzelas que não assumem sua predileção pela sem-vergonhice a quatro paredes. Das pervertidas enrustidas. Daquelas que travam com pensamos do tipo ‘onde ele aprendeu isso?’.

Por outro lado, de nada adianta o brucutu cuspir macheza no boteco da esquina e se borrar nas calças se a mulher aparece com algum aparato sexyshopiano no momento do coito. Propaganda falsa. Procon no patife, minha senhora!

Sou tarado, sou canalha, tenho cara de safado e sou bom nisso. Tenho minha mulher ideal e sigo as indicações do mestre Chico Buarque sobre a profana: “Ela gosta do tango, do dengo, do mengo, domingo e de cócega. Ela pega e me pisca, belisca, petisca, me arrisca e me enrosca”. Valeu pela dica, Jorge Maravilha.

terça-feira, 6 de março de 2012

Carta aberta a Ovídio


Ressuscitem imediatamente Públio Ovídio Naso, escritor romano que viveu entre a segunda metade do I século a.C e do século I d.C, para que complete sua obra inacabada.

Em “A Arte de Amar”, Naso compra a briga com o cupido e jura que pode derrotar o efeito desastroso do amor. “Venham às minhas aulas, jovens enganados a quem o amor só trouxe decepções. O mesmo que vos ensinou a amar vos ensinará como vos curardes” promete o político das causas impossíveis há 2012 anos.

Diria ao poeta-curandeiro que, mesmo diante de tantas dicas valiosas, foi incompetente diante do principal mal da separação: o domingo. Provavelmente naquele tempo não existiam Faustões e outras drogas depressivas, mas esquecer do principal efeito colateral do pós-romance é imperdoável.

Mas onde quer que esteja Nasão, nesse momento, digo-vos em verdade: Ovídio, quando disseste “Elimina a ociosidade: é ela que impele as setas de Cupido” não tinha a real noção do que é um domingo na vida dos amantes. É justamente da ociosidade compartilhada que os amantes sentem falta, Naso! Não adianta nos ocuparmos com trabalho, pois o corpo pedirá um almoço às 3h da tarde na churrascaria preferida ou tacacá do fim de tarde.

Poderá dizer que ao usar esse argumento deixei de lado o descanso sabático. Engana-se! A ociosidade do sábado é facilmente driblada pelo futebol e pela cerveja com os amigos, pelas religiosas faxinas ou as compras do mês. Ademais, o sábado não usa as algemas de ser um dia pré-segunda-feira, como é o caso do dramático domingo.

Pouco adianta “fazer longas viagens e fugir para muito longe” se, independente do lugar, os amantes precisam passar pelo sofrimento dominical e outros fantásticos shows da vida. Como pode Nasão, dizer que para se livrar do sofrimento, “O uso de feitiços é condenável” se temos um dia na semana tão cheio de ocultismo, como é o caso do Sunday e seus filmes com Charles Bronson no domingo maior.

Por fim, Ovídio, é muito fácil dizer que “A melhor maneira de ter de volta tua liberdade é romper as cadeias que ferem o coração” em uma segunda-feira com muito trabalho por fazer onde tudo volta ao normal, às mais tradicionais e previsíveis rotinas, ansiosas pelo próximo domingo temeroso, onde tudo se acaba para recomeçar.

Do homem na ilha

Me lembro perfeitamente de como vim parar aqui, apesar de tanta poeira que já vi passar, de tanta poeira a comer o melhor dos dias. Os barcos passam e não param mais. Certa feita um senhor veio me buscar e disse que eu devia ir, mas eu não queria. Preferia ficar aqui sozinho. Esse mesmo senhor quis saber o porquê. Eu disse que ia esperar ela voltar.
Conheci essa mulher e no mesmo dia me apaixonei. E logo depois de me apaixonar por ela, ela se apaixonou por mim e aconteceu de ficarmos juntos. Divina Providência. Ficamos juntos e éramos delirantemente felizes. Daí ela teve a ideia de vir pra cá, pra essa ilha, pra construir um mundo nosso, um mundo onde só a gente acontecesse de existir e só a gente daria conta da gente. Tinha um barco, me lembro sim que tinha um barco, uma pequena embarcação tosca de madeira, que ficava atracado na ilha pra quando a gente precisasse ir ao continente. Me lembro que a primeira vez que pisei na ilha me assustei porque não conseguia ver o continente. Me lembro que ela disse que era só questão de acostumar, que já que eu estava ali eu tinha que viver aquilo ali. Me lembro que disse a ela que abriria mão de toda uma vida pra ficar lá, se ela pudesse me garantir que ficaria lá comigo pra sempre. Me lembro que ela sorriu e disse que era pra sempre, que não tinha outro jeito de ser. Me lembro que quando chegamos ela mesma cuidou da casa, de todos os detalhes, e sempre ia ao continente pra buscar o que fosse preciso. E vivemos felizes aqui, por anos e anos. Até que um dia ela cansou, eu acho. Disse que queria voltar pra ilha. Daí eu disse a ela que não tinha como, que seríamos como estranhos lá fora porque já éramos tão um do outro que não havia a mínima possibilidade de ser de mais ninguém. Que ninguém mais lembraria de mim porque eu tinha deixado tudo pra trás sem nem avisar, que eu tinha simplesmente ido e não tinha como voltar. Me lembro que chorei pedindo pra ela não fazer pouco do meu gesto. Mas ela insistiu. Então combinamos que ela poderia passar uns dias no continente, pra matar a saudade do que quer que fosse, e depois voltaria sem remorso de ter deixado tudo aquilo pra trás. Quer dizer, era o que aconteceria comigo caso eu quisesse ir embora da ilha: ao botar os pés no continente, ia perceber que o meu lugar no mundo era o peito onde ela me abrigava nas noites de tormenta e não teria sentido em insistir nisso. Porque há anos eu tinha saído do continente sem olhar pra trás e não saberia reconhecê-lo, nem conseguiria encará-lo de frente. Eu acreditei nisso. E pedi pra ela lembrar disso quando lá estivesse, e pedi pra ela lembrar de quantas noites pedi pra voltar e ela me abraçava e dizia “não tem necessidade de voltar porque é aqui nosso lugar, é aqui que somos de verdade e é aqui que vamos ficar pra sempre”. Ela prometeu que ia lembrar. E entrou no barco e partiu. Foi pro continente e dias após voltou, e pareceu mais disposta, e pareceu verdadeiramente feliz em estar ali pra sempre. E eu agradeci por ela não ter me deixado ir quando eu quis, porque senão eu findaria sem ela e sem luz pros meus dias. Mas eu a via chorar à noite, e não sabia que a saudade do continente tinha apertado tanto. Fiquei triste por ela, e claro que a única solução seria queimar o barco. Se voltar ao continente tinha feito mal a ela, não voltaríamos nunca mais. Queimei o barco. Tinha ouvido isso numa canção e achei extremamente poético. Então queimei o barco. Ela chorou dias e dias seguidos, disse que queria a vida dela de volta. E eu só conseguia dizer “fiz isso por você”. Ela não ouvia, ela se olhava no espelho e dizia que não se reconhecia, ela me olhava e dizia que não me amava mais. Que eu a sufocava naquela ilha. Que era egoísmo meu ter queimado o barco. Eu chorava e repetia “fiz isso por você, fiz isso por nós, porque eu acreditava na gente”. Ela não ouvia. E não me abraçava mais, e quando me beijava era tão fria que doía. E eu repetia “foi por você, só por você”.
Me lembro que isso durou uns meses, não sei precisar quanto tempo, mas pareceu uma eternidade. E um dia eu acordei e ela não estava. Corri pra praia e a vi no mar, nadando em direção a uma embarcação que passava próxima. A primeira embarcação que vi passar em anos. A primeira embarcação e ela partiu. Da praia eu a vi ser resgatada pelos tripulantes do navio e não olhar uma única vez pra trás, assim como fiz anos antes, assim como quando deixei o continente pra viver naquela ilha com ela. Deus, ela não olhou pra trás por um segundo sequer. E partiu.
No início ela mandava cartas em garrafas, coisa mais ridícula. Dizia que sofria também, mas que precisava seguir, viver novas coisas, que eu fazia mal pra ela. Depois o tom das cartas foi mudando, ela dizia que eu precisava sair dessa loucura e me tratar, que eu era doente e que ela não viveria comigo nunca mais. Por fim, ela mandou uma carta seca dizendo que não podia mais fazer nada por mim, e junto à carta uma foto dela com um rapaz que ela conhecera na última visita ao continente antes de me deixar.
E eu fui ficando por aqui, fui fincando por aqui. Desaprendi a linguagem que as pessoas usam pra se comunicar umas com as outras. Desacreditei no ser humano e em qualquer forma de amor. Fui ficando aqui, náufrago das promessas que ela me fez, náufrago do cheiro que ela tinha na nuca. Não tinha porque voltar ao continente – as promessas dela nunca se realizariam, o cheiro da nuca dela nunca voltaria a ser meu. Mas, lá no fundo, nunca fui embora porque achei mesmo que um dia ela voltaria. Nem que fosse pra tripudiar, ou sentir pena, ou até quem sabe me salvar. Mas ela me esqueceu. Ela seguiu com a vida e eu chorei até secar, e eu pedi a Deus que fosse piedoso e me levasse, mas quanto mais eu pedia menos ele me ouvia. Porque eu zombei dele um dia, e dos sinais, e ignorei tudo. Deixei tudo pra ter nada. Pra ser nada.
E agora voltar parece despropositado. Surreal. Sou o espectro infeliz do que fui um dia. Porque um dia fui inteiro, mas dei tudo de mim pra ela. A parte humana que tinha em mim morreu junto com a lembrança dela.

"Quem pagará o enterro e as flores se eu me morrer de amores?"