quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Se o amor tem que nascer, que seja no carnaval.

Como era demorado aquele ônibus 206 - Cohab do Bosque, que encurtava de 40 para 10 minutos o tempo de chegada e isentava meu quengo de algumas sebosas gotas de suor, em razão do calor amazônida, com jeitão sertanista. Preferia gastar 37 reais mensais a ter a imagem higiênica maculada no sacro ambiente trabalhista. Não que os meus 15 anos de idade da época não me dessem um alvará de atoleimação estética perante meus alunos e chefe. Porém, eu era assim.

Eram todos mais velhos que este aspirante a instrutor de Windons, Word, Excel e outros mistérios cibernéticos que hoje qualquer pirralho com problemas urinários noturnos domina sem cerimônias. Um moleque com ar marrento, como era este que vos escreve, tem suas preocupações, entre elas o próprio layout físico.

Mas como estava hablando, o coletivo era um vestibular de paciência para um Dalai Lama, tamanho descaso com a pontualidade. E não é que comecei a me afeiçoar com esse desleixo? A razão era ela, a morena de cabelos pintados. Aquela galeteria obscena de tão imunda e entregue às baratas, localizada em frente ao ponto de ônibus, virou destino certeiro para minhas retinas. Desde que a vi pela primeira vez, foi amor na hora. Ela varria a varanda do estabelecimento, ao mesmo tempo em que pegava um carão daquele gordo ensebado e imbecil, dono do lugar. Eu travava a leitura fueda de “Cem Anos de Solidão”, do mestre Garcia Marques, enquanto pensava que aquela bendita podia dar cabo ao meu retiro amoroso em segundos.

Via ali a própria encarnação da cinderela com um semblante misterioso de uma quase roqueira, mas sem exageros que agridem as vistas mais preconceituosas. Tinha o olhar matuto que me provocava um teco de remorso quando era flagrado a encarando. Todo dia, logo depois da sesta, ia para o lugar com a intenção de puxar um papo/cantada non-sense “Você vem sempre aqui?”, ou um clichezaço “Não nos conhecemos de algum lugar?”. Mas cadê a coragem, amigão?!

Timidez é algo bonitin no seriado adolescente-mequetrefe, mas na dramaturgia da realidade é uma estorva dos diabos! E eu era muito frouxo. Entrentanto, encarava. E de tanto peitar de longe a donzela de ferro – pelo menos é o que a camisa dela dizia em english, com um monstro ao fundo – ela reparou em mim. Ela sorriu. E dali em diante, partimos para a fase da cumplicidade sem palavras, onde ambos sabiam da existência do outro sem ter trocado um fonema se quer.

Foi então que, sem um aviso prévio, ela já não estava mais ali. Tinha no seu lugar, uma senhora de idade que não me atraia mais como sua antecessora, creio por conta do excesso de rugas. “Fudeu!”, conclui ao dar conta que, em razão da moleza juvenil, não sabia nem o nome da mujer. Por alguns dias fiquei entojado.

Passado alguns meses após minha minúscula e contraditória epopéia tragicômica, chega a temporada de festa da carne para aliviar minhas lamentações. Era hora de lavar a égua dessa vida mais ou menos. Diz a medicina alternativa que um antídoto arregaçado para dor de amores fracassados é uma dose cavalar de máscaras, confeites, serpentinas, mujeres, bebidas de procedência duvidosa, lolós entre outras sacanagens no canibalismo consensual que expira tão logo chega a quarta-feira de cinzas.

Eis que no meio do vuco-vuco, enquanto realizava minha viagem carnavalesca num dos infinitos trenzinhos, vejo minha musa platônica em um desses veículos humanos vindo em direção oposta. Ela me viu e, tal como eu, apresentou surpresa, alegria, entusiasmo e desejo na mesma face. Foi tudo fulminante. Quando mal dei por mim, já tinha passado e alguém me empurrava para frente, pois trem de carnaval, como é sabido pelos ordinários, não pode parar. Perdi-a pela segunda vez na mesma encarnação.

Não, não a deixaria escapar outra vez. Fui a sua caça, em meio ao amontoado de foliões, arlequins, colombinas e pierrots. Novamente, seu trem cruzou a mesma linha do meu e, invertendo a lei da natureza, fui agarrado por ela que me tascou um beijo daqueles que mataria de inveja até mesmo o marinheiro e sua concubina na Times Square. Ela tinha um piercing na língua. Foi fueda. Foi sublime. Adereço recomendado por este roçador, povão.

Gritamos para sermos ouvidos em meio ao barulho provocado pela música “Pa rarã rarã na na na... Vai pra p... que pariu!”: “Qual é o teu nome?”; “Fernanda, e o teu?”; “Júnior”. Sem mais palavras, saímos de lá direto para um hotel barato onde vários amores pagos, sinceros e não sinceros já estiveram outrora. Foi o abofelamento dos deuses, com gozos mitológicos. Se o amor tem que nascer, que seja no carnaval. De tão zonzo, apaguei e só no outro dia. O único vestígio que a Fê generosamente deixou para trás foi o aroma de seu Floratta In Rose. E desta forma não vi mais, por muito tempo, o maior amor de carnaval que já tive.

Mas quis o roteirista comediante, escritor da minha sina, elaborar um gran-finale para essa história mal-acabada. O reencontro ocorreu na festa de noivado de um amigo daqueles com status de irmão que andava meio sumido por essas paragens, culpa de um emprego full-time. É engraçado como pessoas tão próximas conseguem desaparecer, mas o afeto e amizade se mantêm intactos. Assim era com esse chegado.

Foram longos três anos sem aquele olhar atrevido. Entretanto, devo admitir que Fernanda era a noiva mais linda que vi na vida...

7 comentários:

  1. Hahahaha: "Como era demorado aquele ônibus 206 - Cohab do Bosque" Ainda é.:~

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  2. Rrsrsrs, conheço bem essa demora do Cohab... :/
    Gostei do texto, principalmente da parte: "quis o roteirista comediante.." ehhehe
    Parabéns, o gran-finale foi realmente um gran-finale, fiquei com aquele sorrisinho no final da leitura! ;D

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  3. Eu que sei o quanto o Cohab demorava e ainda demora, mas não ganha do Circular Aviário. kkkk! Amei o texto. ótimo, como sempre!!

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  4. O Cohab do Bosque é demorado, mas, na contramão do sistema bruto, os amores de carnaval são aperriados demais...

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  5. o citado mestre diz mais ou menos assim "não há uma linha de meus textos que não seja real". enfim, ao ler esse texto me ocorre uma pergunta tentadora: meu caro essa história aconteceu de fato? Bons textos nos confudem.

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  6. "Laranja madura na beira da estrada/Tá bichada, Zé/ou tem marimbondo no pé". Sou a bamba do grupo... E alguém já esperou o Tropical num dia de sol "carioquês"?

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