segunda-feira, 11 de julho de 2011

A obra prima

Tinha esfriado no final do dia. Corri pra casa e o encontrei como venho encontrando há meses: enfiado no livro. Guardei meu sorriso. Ele tinha me ligado à tarde dizendo que estava com saudade, perguntando o que estava fazendo, umas bobeirinhas assim que ele nunca tem o costume de fazer. Então eu corri pra casa e achei que a ligação e o frio iriam ajudar. Mas lá estava ele, enfiado no livro.

__ Acabou sua obra de arte?

Ele não levantou a cabeça, mas percebi que só então ele tinha se dado conta da minha presença. E respondeu entre dentes um “o que você acha?” bem mal humorado.

__ Quanto mais tempo você leva pra acabar esse livro, mais e mais ele vai acabando com a gente.

Ele suspirou. Fui pra cozinha, me sentindo a pessoa mais sozinha da face da terra. E é surreal se sentir sozinha quando se mora com alguém. Mas eu me sentia.
Vinha assim há meses. Eu entendia, ou tentava entender o máximo que eu podia. Tinha o livro, que era um objetivo pessoal que ele vinha perseguindo há anos, tinha o trabalho no banco, tinha os problemas familiares (o pai dele é uma “maravilha de pessoa”), enfim. E no meio disso tudo tinha eu. Sem família, sem grandes amigos, sem paciência pra pessoas. E tinha a gente, um relacionamento maravilhoso, a melhor conversa que já tive, o melhor sexo que já tive. E entre a gente, esse abismo.

Me perdi nos preparativos de uma sopa (pra um, os farelos de pão pela mesa me indicavam que ele havia comido) e ouvi o celular dele tocar lá do quarto. Conversa rápida, não mais que cinco minutos, e ele passou pela sala apressadamente avisando que estava de saída.

__ Vai onde? Aconteceu alguma coisa?
__ Não, só o Fábio que me ligou. Vou tomar uma cerveja.
__ Ah.
__ “Ah” o quê?
__ Nada. Só “ah”.

Tinha isso. Eu tinha tanta vergonha disso. Juro por Deus. Ele tinha todas as ocupações com o banco, o livro, a família. Ok. Quando se dava uma folga, ele escolhia qualquer pessoa do mundo pra estar. Menos eu. Deus, como isso me envergonhava.

Tomei minha sopa e me joguei na cama. “Chorei, chorei, até ficar com dó de mim”. Não vi quando chegou, só senti o cheiro pesado de álcool. Devia ser bem tarde. Ou já de manhã.

Acordei quase meio-dia e lá estava ele, imerso no processo criativo de acabar com o que eu sentia por ele. Jurei pra mim mesma nunca mais me envolver com artista bancário, de nenhuma área. Ou, se fosse o caso, me envolveria só com os músicos, porque eles pelo menos deixam claro que são cabeludos, safados e vão comer todo mundo e te fazer sofrer miseravelmente. Mas jamais me envolverei novamente com um poeta que finge ter sentimentos. Rolei na cama sem coragem e quando fui me levantar bati a perna nas costas dele sem querer. E instaurou-se o caos.

Ele me acusou de agressão. Disse que eu vinha agindo como adolescente, que não conseguia entender os processos dele, que ele tinha que cuidar da vida e que o arrastar da minha solidão pela casa não ajudava em nada. Que eu tinha que sair e arranjar umas amigas pra falar mal dele. De repente até arranjar um amante, quem sabe assim eu ficaria quieta e daria a ele o espaço que ele precisa. Disse mais uma série de coisas horríveis, que só de pensar me ruborizam a face de tanta vergonha. Eu me levantei sem chorar, sem vacilar, juntei minhas coisas numa bolsa de viagem e no momento em que pus os pés fora do prédio desabei. Chorei no meio da rua, e eu não chorava na frente de ninguém. O porteiro, seu Geraldo, ficou horrorizado. Quis chamar a ambulância, me levou pra dentro do quartinho dele, pediu pra esposa passar um café bem forte pra eu me recompor. E eu chorava copiosamente. Chorei copiosamente, na frente de estranhos, por umas duas horas.

A esposa do seu Geraldo, dona Bete, me deu um café fortíssimo e sentou do meu lado no sofá com uma cara de pena que me deu dó. Era magrinha, pequenininha, o ser humano mais frágil que já vi. Quase não ouvi sua voz quando ela me perguntou o que tinha acontecido. Hesitei, mas acabei contando como eu vi de mãos atadas meu relacionamento afundar. E de algum lugar no fundo daquela mulher frágil saiu um discurso tão duro e realista que senti vergonha. Não pelo que falei, mas por tudo que permiti que acontecesse nesses últimos meses.

Após uns dois dias a vida já tava voltando à normalidade, mas o discurso da dona Bete não saía da minha cabeça. E era justamente nisso que eu pensava quando ele me ligou. Pediu desculpas, disse que agiu feito idiota, que a casa não era a mesma sem mim, falou falou falou e eu chorei chorei chorei copiosa e silenciosamente. Disse a ele que passaria lá em alguns dias, pra quem sabe conversar, ou só pegar o que de mim restou por lá. E o fiz, naquela mesma tarde. Toquei a campainha algumas vezes, ele não atendeu, então entrei. Ele estava dormindo. No escritório, sobre a escrivaninha, o livro. Fui até a última folha e constatei que estava pronto.
Ateei fogo aos papéis. Tive o cuidado de ir até a cozinha, pegar um litro de álcool e derramar no computador, que obviamente também pegou fogo. Certamente ele teria aquele material no e-mail, mas só o fato de saber que aquilo dificultaria de alguma forma o trabalho e traria um prejuízo mínimo, me senti feliz. Me senti leve, como há muito não me sentia. Depois fui até o quarto, bati, abri um pouquinho a porta. Ele acordou com a luz no rosto.

__ Oi, amor.
__ Oi, meu bem. Sua obra de arte tá pegando fogo.

2 comentários: