quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Do dia que te vi na rua*

Te vi na rua. Mudei de caminho. Talvez tivesse sido melhor mudar o pensamento pra evitar aquela velha história que começa pelo fitar dos olhos, vem gelando os sinos, as orelhas, a boca começa a ficar seca e ao mesmo tempo os joelhos começam a tremer e ela, claro, sempre, anuncia sua volta triunfante, com toda acidez e amargor possível para alguns metros de estômago.

Teria sido melhor se eu ao invés de desviar o olhar, desviasse o carro e batesse na primeira latrina, no primeiro poste que estivesse pela frente. Aí sim eu teria motivos para sentir dor. Enganaria meu cérebro, deslocaria as sinapses para a testa batida no volante, ou pra perna amassada pelas ferragens, ou para as orelhas atingidas pelos estilhaços do vidro. Aí sim eu teria motivo para doer à vontade e deixaria minha gastrite quieta pra sempre.

Se eu tivesse escolhido outro caminho, aquele que costumo ir... Mas não, logo hoje decidi fazer um percurso desconhecido só por que ouvi dizer que faz bem para o cérebro. Exercita. Deixa inteligente. Mas eu não quero ser inteligente. Quero só ser eu e em toda a miudeza dos pequenos grandes detalhes e defeitos pré-moldados.

Talvez eu devesse ter saído de bicicleta, mas o pneu dela está sempre murcho. Sempre, sempre, por mais que eu insista em deixá-lo apto para a minha próxima volta. Pensando bem, se eu tivesse saído de bicicleta também tinha te encontrado. Você está em todos os lugares. Nos orelhões, nas calçadas, nas vidraças, nas costas de meninos e homenzinhos em puberdade. Nas camisetas da Hering, nas cores que vejo pelas vitrines. Não adianta eu desviar o caminho. Sempre vai ter um quiosque que vende cachorro quente, sorvete, pipoca doce, pizza, sushi... que você gosta, assim como eu, de coisas que engordam. Pois é, somos dois falsos magros com cérebros gordos, mas eu só queria ser inteligente. É eu sei que disse que não queria ser, mas na verdade, no fundo mesmo, eu queria. Queria poder assistir filmes e ouvir músicas sem conectá-los aos meus sentimentos - olha a pretensão- como se os autores tivessem feito aquilo que vejo e ouço só pra mim. Sou burra, eu sei. Mas todo mundo acha que o que serve como carapuça, foi feito por encomenda.

Eu te vi na rua mas não desviei. Passei por cima e você nem me viu.


*O texto é da escritora Kaline Rossi. Que seja só o primeiro de infinitos por esta Confraria. é o que esperamos.

3 comentários:

  1. Kaline, que leitura deliciosa!
    Amei seu texto, espero mesmo q seja só o primeiro de muitos, pois já estou ansiosa pelo próximo.
    Abraço

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  2. 'Eu te vi na rua mas não desviei. Passei por cima e você nem me viu.'

    minha escritora favorita! ;*

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