quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Convivência*

Foi na feira de livros infantis que a viu pela primeira vez. Dali a cinco anos estariam casados, com dois filhos e insuportavelmente dividindo a mesma casa. Se soubesse disso, não dos filhos, jamais teria parado para perguntar se ela já tinha lido O Pequeno Príncipe. Foi amor a primeira vista, garantiram. Mas a convivência é mesmo uma merda. E ela passou a se incomodar com as cuecas jogadas fora do cesto de roupa suja. E ele passou a se incomodar com a tampa do vaso sanitário sempre fechada. Era pasta de dente apertada em qualquer lugar e louça suja por um dia inteiro em cima da pia. Se soubesse de tudo isso, que chegariam a esse ponto, jamais teria contado a história d’O Pequeno Príncipe, quando ela respondera que nunca o tinha lido. Casaram na igreja mais bonita da cidade, e mais antiga também. Tinham amor para a vida inteira, como diziam. Tinham cativado um a outro e eram ambos responsáveis por isso. Mas a convivência, lá vem ela, os tornara tão desconhecidos quanto antes de trocarem as primeiras palavras naquela feira de livros infantis. Ela, sabedora de tantas coisas, resolveu deixar a vida levar para o caminho que desejasse. Ele, que sempre fazia tudo o que ela queria, concordou e seguiu assim. Mas as revistas de moda espalhadas por toda a sala, e a televisão sempre ligada no SporTV começaram a não só torná-los insuportáveis um com o outro, mas com todos os outros. Não recebiam mais visitas e sequer dormiam no mesmo quarto. Mandaram os filhos passarem férias com os avós. O pai dele e a mãe dela. Cada um com um para, pelo menos aí, não se desagradarem. Ele resolveu sair de casa, não ia criar caso por causa de um sofá velho presenteado no casamento. Ela, naquele dia, resolveu ir dormir na casa da melhor amiga. A casa ficou vazia. Sem desentendimentos, sem crianças, sem pais, sem amor. Ele decidiu que realmente ainda não estava preparado para iniciar um novo relacionamento. Olhou bem para aquela moça na feira de livros infantis, mas depois de vivenciar mentalmente como estariam dali a cinco anos, devolveu O Pequeno Príncipe para a prateleira.

*Texto de Jeronymo Artur. Há tempos ele já escreve. E muito bem.

4 comentários:

  1. Pow Jeronymo, conseguiu transformar a Feira do Sebo numa narrativa triste pra cacete,... kkkk - mto bom cabra.. volte sempre por aki.. o/

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  2. Faço minhas as palavras do Ulisses: "volte sempre por aki"
    Amei a leitura. Triste, delicada, surpreendente...

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  3. Que legal ver O Pequeno Príncipe sendo o "pivô" dessa história. Nao é o primeiro "caso de amor" (neste caso em específico, entre aspas mesmo), que escuto (ou leio), com uma mulher que afirma que nao leu o livro pra um carinha numa feira... lindinho!
    bjs

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  4. Esta é uma verdadeira definição do desgaste da convivência.

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