sexta-feira, 19 de março de 2010

Elegia*

Um último cigarro antes da chuva cair, essa chuva que cai todos os dias, no mesmo horário, que me faz rir com desgosto. Ela costumava falar que em Londres chove todos os dias, perto das cinco, e os londrinos combinavam encontros sorridentes dizendo “antes ou depois da chuva?”. Como se tivesse alguma graça nisso eu ria junto com ela, porque não havia graça em coisa outra que fosse ela, então me ria dela, e junto com ela, sentindo uma eternidade de certeza afável e certa. Mas agora eu ria com desgosto, porque isso aqui não é Londres, é só um canto perdido onde me escondo. E ela não tece mais esses comentários absurdos porque ela não está mais aqui, sabe lá onde se esconde, tão longe de mim. O medo velho-novo perpassou meu peito enquanto eu atravessava os corredores, incerto, e cheguei ao elevador sentindo a velha ardência na garganta, o choro contido, a explosão de tudo que dói. Ainda. Ela já tinha ido há muito tempo, mas eu nunca soube afirmar com certeza quando eu a havia perdido, é claro, eu a havia perdido antes dela partir, não me resta dúvida. E eu nunca soube afirmar como foi que a perdi, logo ela, sempre tão minha, como se eu de fato a tivesse comprado naquela noite potencialmente fria em que perguntei, singelamente, se podia comprá-la somente para aquela noite. Depois a libertaria, embora não o quisesse verdadeiramente. Ela sorriu e disse que não carecia de depósito, de valor algum, pois não se compra o que não se pode pagar, sorrimos juntos e o céu se abriu, e a noite ficou quente e segura como era quente e seguro o hálito dela, que provei pouco antes de beijá-la. E logo depois ela sorriu, era dada a sorrir da vida, era feliz. Ela sorria e assolava meu peito pretensamente infeliz, a coisa pseudo-depressiva que eu afirmava sem ter porquê, afinal de contas quem haveria de ser infeliz tendo a ela como guia? Talvez por isso ela me tenha deixado, eu vivia a chorar enquanto ela conseguia se rir e rir de mim e rir de tudo que lhe competia. E o que ela não conhecia fazia questão de deixar às margens, para bebericar quando desse sede, e se desse sede, mas sem se afogar jamais. Porque ela sempre soube a medida do próprio coração, enquanto eu julguei ser o meu maior do que era, e o dei a ela sem saber que dele ela não precisaria. Saí do elevador desejando a morte próxima e, senão indolor, menos dolorosa que aquela sobrevida que eu tinha agora, agora que ela não estaria em casa a me esperar, com um café preto e Billie Holiday. E sabendo que eu não a beijaria ao chegar e não sentiria teu perfume, aquele perfume que estava sempre nela, e mesmo sabendo que era perfume eu teimava em dizer que era o cheiro dela, porque aquele cheiro nunca saía. Caminhei num caminhar incerto e vacilante até a minha mesa, onde ainda jazia uma fotografia dela, de tempos melhores e felizes, onde o sol fazia o seu percurso num ritmo mais lento para que os nossos dias não findassem depressa sem nos dar a oportunidade de viver um pouco mais. E pude ouvir o riso dela quando me ligava só pra dizer que já sentia minha falta, e que estaria a me esperar, e por Deus, como ela me amava. “Quando foi que nos perdemos?”, ela me perguntou num misto de choro e raiva na última ligação, e eu fiquei calado, porque não havia verbalização praquilo que eu tentava não sentir. O telefone tocava mas eu não queria atender, porque eu sabia que não seria a canção dela, a canção da voz dela a me cantar tudo que de mais belo havia. E quando foi que eu a perdi, nunca soube. E o tanto que a amei, jamais pude mensurar, porque não havia medida. Sabia só que não tinha mais vida e nem sangue e nem suor, era só aquilo, aquela coisa morna de requentar, sem brusca poesia. Era só eu e eu só, e nunca me fui a melhor das companhias, especialmente depois dela. E eu tentava homenageá-la em palavras que fugiam sem alcançá-la, eu tentava senti-la sem que ela estivesse. E desde que a perdi eu não sentia mais nada. Mas a fotografia dela na minha mesa sorria, e isso era quase viver.

*Texto de Daniela Andrade, mais uma romântica desta badalada Confraria.

3 comentários:

  1. Um relacionamento nunca acaba quando ele termina. Esse processo do luto é doloroso, porém essencial... Seria menos sofrido se a cada término não nos sentíssemos tão fracassados. Lindo texto! Parabéns!

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  2. Simplesmente muito, absolutamente bem escrito!
    Estilo bem apurado, teor póetico excelente, enfim, lindo mesmo!
    Quanto ao conteúdo, da uma tristeza saber que meu amor pode acabar assim, mas medo não combina muito com amor, então...

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  3. Simplesmente muito bem escrito!
    Estilo bem apurado, teor póetico excelente, enfim, lindo mesmo!
    Quanto ao conteúdo, da uma tristeza saber que meu amor pode acabar assim, mas medo não combina muito com amor, então...

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