segunda-feira, 1 de março de 2010

Desaprendizado

Começando a conversa: esse talvez seja o primeiro texto declaradamente pessoal que publico em um espaço que não seja o meu bloguinho, meu cantinho escondido onde falo abertamente de mim. Claro que, dentro do meu entendimento de literatura e partindo do pressuposto de que sou uma literata, muitos dos textos que escrevo, embora ficcionais, têm relação comigo ou com vivências que experimentei. Mas, nesse post sincerista, não vou me travestir de literata. Sou eu, palavra por palavra. Fácil não é. Uso a literatura justamente para falar de mim sem me expor. Mas como o espaço é dedicado aos românticos incorrigíveis, me sinto à vontade, é quase como conversar com a melhor amiga.

Sendo um texto sincerista, o estilo também é o sincerismo. Escrevo como falo, como sinto, sem preocupações maiores com o vernáculo. Principalmente por saber que, quando há sentimento, quem também sente entende, e isso independe da forma como é dita. Basta sentir.

*

Estou há quase quinze dias sem ver meu namorado, fato que não ocorre há mais de um ano. Difícil, sabem? Ser dividida em duas cidades sempre faz do período de férias um drama.

Passar tanto tempo longe da cara persona acabou me proporcionando diversas epifanias, coisas que tinha ignorado até então e surgiram em momentos de olhar pra dentro. Descobri que, ao contrário do pressuposto comum de que com o amor se aprende, eu desaprendi uma série de coisas.

Descobri que tenho medo de andar sozinha à noite. Eu, que sempre curti a noite (entendam, eu disse a noite e não a “nigth”), que sempre caminhei sozinha à noite pra pensar, que andava mais de dez quarteirões com a melhor amiga depois das dez da noite só pra botar a conversa em dia, tenho medo de andar sozinha à noite. Percebi isso ontem, enquanto voltava pra casa saindo da casa de um amigo. Porque há mais de um ano, quando eu volto pra casa, meu namorado tá no banco do passageiro do carro. E parece que só a presença dele garante minha segurança e bem-estar. Não, não me sinto uma mulherzinha indefesa e não vejo nele o guerreiro medieval que vai afastar os monstros na noite escura. É só aquela reação mecânica de pensar que, se algo acontecer, não vai ter ninguém do meu lado pra ajudar. Também não significa que antes eu me sentia Highlander. É difícil explicar. Mas, resumindo: antes dele, eu andava à noite sem medo.

Descobri também que não sei mais dormir em cama de solteiro. Sozinha, então, é terrível. Descobri numa noite fria, e não só por me faltar o cobertor de orelha, aquela coisa de dormir abraçadinho e tal. Ilustrando: sempre durmo com o ar-condicionado ligado. E há sempre aquele momento, no meio da madrugada, que o frio do ar aperta. Quando isso acontece e quando estou com ele do meu lado, me basta dizer “amor, tou com frio”. Em um minuto – às vezes até menos – o ar já está desligado, ele já ajeitou os cobertores e já me abraçou daquele jeito dele que me deixa mais aquecida. Parece romance, né? É bem piegas, né? Talvez até seja. Mas quando você acorda no meio da noite morrendo de frio e leva cinco minutos pra perceber que a cara persona não está lá pra desligar o ar-condicionado, fechar a janela, virar o ventilador pro outro lado, ajeitar os cobertores ou dar aquele abraço, qualquer coisa que demonstre que seu incômodo incomoda também aquele a quem ama, quando você acorda no meio da noite e percebe que não tem ninguém ali do lado que cuide de você, dá um aperto, ó. Uma vontadezinha fajuta de chorar, chorar de saudade porque você se pega pensando se a outra pessoa também está em casa rolando na cama sem conseguir dormir, porque de repente aquela cama ficou enorme demais.

Descobri que todos aqueles rituais matinais vistos nos filmes estão apenas lá, nos filmes, mas que ainda existe uma maneira de amanhecer ao lado da pessoa amada sem perder a ternura. Abraços, desejos de bom-dia, mais abraços, ele se levanta pra se preparar pra sair (eu me dou ao luxo de ficar na cama até as onze). Toma um banho, come alguma coisa – se o horário permite – e sempre antes de sair me dá um beijo, um abraço e me deseja de novo um bom-dia. Às vezes diz que vai tentar resolver o que tem pra resolver e voltar, e se volta, me traz coxinha de frango e Baré, café da manhã dos campeões. E assim eu desaprendi não só a dormir sozinha mas, obviamente, a acordar sozinha, e meu humor oscila durante o dia se não tenho nosso rituais matinais. É como se a ausência do desejo dele de bom-dia acabasse influenciando no meu dia de fato, deixando ele bem meia-boca.

Descobri que assistir a competições de artes marciais sem ele também não tem graça nenhuma. E olha que eu adoro artes marciais. Sempre assisti ao UFC, campeonato de MMA (mixed-martial-arts, o antigo vale-tudo), mas com ele tudo fica tão mais engraçado e divertido, sabe como? Porque não é só assistir ao evento. É deixar de sair num sábado à noite, comprar umas cervejinhas e acompanhar com fervor religioso os competidores se matando numa gaiola – e o amor tem dessas coisas, de transformar em poesia um esporte violento. Tentei assistir ao UFC sem ele durante as férias, mas dormi durante o primeiro round da primeira luta. E isso nunca tinha acontecido antes dele. Com ele, então, impossível. Porque ao menor cochilo eu acordava assustada ao som de “pega, puta! Dá na cara dele! Joelhada, joelhada! Muito foda, muito foda!”. Claro que é incrível descobrir, no meio de tanta gente, alguém com tanta afinidade para as coisas menos prováveis, como o MMA. E quando se encontra, parece que não dá mais pra dissociar. Daí a gente desaprende a acompanhar se a pessoa não está por perto, pra fazer com que o gosto pela coisa faça sentido.

É claro que todo esse processo de desaprendizado leva a pessoa a aprender coisas novas. Aprendi e aceito a condição de lembrar dele ao ouvir heavymetal, e por lembrar dele, de sentir saudade de ouvir heavymetal. Aprendi a perder uma tarde inteira assistindo ao desenho animado preferido dele (Flapjack, recomendo, passa no Cartoon) só pra ter a impressão de que estamos juntos em casa e eu o observo rachar de rir enquanto assiste. Aprendi que saudade dá pra se matar assim, aos poucos e com pequenas coisas, enquanto não chega o momento de estar junto de novo. Aprendi que o meu lugar preferido do mundo é o peito onde ele me abriga, ainda que à distância, ainda que quebrada em duas cidades, e acredito no poeta que diz que deve haver um porto¹.

Assim como pude descobrir, à la Orkut, o que aprendi com os relacionamentos anteriores (impossível deixá-los de lado, sou feita de memória): o amor é cigano. Caminha, caminha, caminha, tece trilhas e mais trilhas até o local perfeito pra se parar e descansar. The long and widing road that leads to your door². O longo e sinuoso caminho que me levou até a porta dele.

1 – Caio Fernando Abreu
2 – Lennon & McCartney

Texto de Daniela Andrade. Trata-se de réu reincidente, ou seja, mais uma romântica inveterada.

10 comentários:

  1. sou fã dessa mulher. não consigo dizer nada alem disso.

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  2. Gostei, gostei muito... Só podia ter vindo dela!

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  3. Muito bom!!! Situações ditas assim com tanta leveza,me fez perceber que ser um romântico e acreditar no romance não é assim tão complexo...

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  4. Simplesmente lindo!Deu vontade de chorar tbm, pois eu sei bem como é a dor da ausência!

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  5. Excelente! Amei o termo "sincerista"! ;D

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  6. Nossa, a parte do frio na madrugada, putz...
    Dia desses, descobri que nao sei ligar a Tv e o DVD... Enquanto ele prepara o filme pra gnt assistir, eu preparo a pipoca! Essim é o trabalho em equipe, a parceria no namoro, quando a gente "aprende", é difícil voltar a ser só...

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  7. muito bom, vou anotar aki no caderninho: "estilo sincerista". parabéns! =)

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