Essa série de textos se baseia em sonhos que tive, que acabei condensando numa historinha de amor. A primeira parte você encontra aqui.
Dias depois recebi a
ligação do escritório dela marcando uma nova reunião. Obviamente
achei que tinha algo estranho, pois a primeira reunião tinha sido
marcada por ela, pessoalmente, e fora do escritório. Talvez ela não
estivesse à vontade, e provavelmente eu não ficaria também, se
assim o fosse. Mas eu precisava do contrato. E tinha pensado nela somente
uma vez por dia desde então. Valia a pena tentar.
A reunião foi numa
quarta à tarde, e tinha umas quatrocentos e cinquenta pessoas na
sala. Não, éramos só nós dois e a secretária, e o pai dela numa
videoconferência. Obviamente achei que ela estava evitando ficar a
sós comigo, e me fechei em copas. Talvez não quisesse que ela
soubesse que pensara nela, ou que o incômodo dela me incomodava.
Assim permaneci até o fim da reunião, quando ela me convidou pra um
cigarro.
__ Te achei
bastante...misterioso hoje.
__ Misterioso?
Hahaha...não, estava apenas concentrado.
__ Hum. E como vai
tudo?
__ Bem tranquilo.
É...como eu me saí? Será que consigo o contrato?
__ Ah, sim. Imagino que
sim, deu tudo certo lá dentro. Meu pai pareceu gostar de você.
Amanhã a Susi te liga pra dar a resposta.
__ Hum, ok.
__ É...sobre o outro
dia...
__ Não, não precisa.
Não vamos falar disso não.
__ Mexeu comigo, sabe?
Olhei pra ela surpreso
e quase engasguei com a fumaça do cigarro. Eu conseguia ser bem
ridículo às vezes.
__ E?
Ela ficou em silêncio
por um instante, depois me olhou com um meio sorriso.
__ E eu liguei pro meu
noivo no dia seguinte. Sem lágrimas, sem álcool, sabe?
__ E?
__ Daí nos encontramos
à noite. Conversamos bastante, foi tudo muito esclarecedor.
__ E?
__ Eu realmente quero
tentar isso, sabe? Fazer dar certo com ele.
__ Ah. Ok.
Tentei me concentrar no
cigarro pra não demonstrar minha clara decepção com o rumo que a
conversa tomara. Ela voltou ao silêncio, olhando pro sol.
__ Bom, eu preciso ir.
Posso esperar a ligação da sua secretária pra amanhã?
__ Pode sim, Filipe.
Depois nos falamos. Tomar uma cerveja, sei lá.
__ Claro, claro. Até
mais.
No dia seguinte a
secretária ligou, e de fato o contrato era meu. Pouco depois ela
mesma me ligou.
__ Viu? Eu disse que
você ia conseguir. Meu pai gostou bastante do seu portfólio.
__ Que bom. Depois que
eu saí do escritório tive muita dificuldade pra conseguir novos
clientes. Tava até considerando dar aula. Mas é meio frustrante.
__ Não, vai ser ótimo.
A Susi te mandou por e-mail alguns documentos, preciso que você dê
uma olhada e responda, tá? E se puder mandar algum rascunho pra
segunda-feira também...
__ Segunda? É...sabe o
que é? Eu sei que acabamos de fechar um contrato e tal, e você
agora é minha cliente, mas é que esse final de semana tô de viagem
marcada pro Rio. Vou ver a final do campeonato carioca. Tem como
adiar esse prazo pra mim até, sei lá, quarta da semana que vem?
__ Final do carioca, é?
E você torce pra qual time?
__ Botafogo. Mas não é
culpa minha, sabe?
__ Hahahahaha, tudo
bem. Você deve ser o único botafoguense com menos de cem anos no
mundo. Tá com o ingresso pro jogo comprado já?
__ Sim. É meio que um
ritual.
__ Ah, é?
__ Meu pai era
botafoguense também. Ele morreu ano passado. Nós nunca nos damos
muito bem, mas os domingos eram ótimos. A gente sempre ia junto pro
estádio. Ali podíamos ser só pai e filho.
__ Ah...nossa, nem sei
o que dizer.
__ Na verdade eu tô
brincando. Meu pai tá vivo e torce pro Flamengo. E nos damos muito
bem, apesar disso.
__ Nossa, que
engraçado. Tudo isso só pra me convencer a te liberar no final de
semana?
__ Pois é...peguei
pesado, né?
__ Não, tá ok. Acho
até que a gente podia se encontrar lá. Eu chego no Rio domingo de
manhã.
__ Vai a trabalho?
__ Não, vou ver o
Flamengo ser campeão em cima do seu timinho.
__ Claro que você
tinha que ser flamenguista.
__ Enfim, só não
comprei o ingresso ainda. Me manda o setor que você comprou pra eu
comprar perto.
__ Hum...ok.
Fiz um suspense, mas
acabei perguntando.
__ Seu noivo vai
também?
__ Ah, não. Não, ele
não suporta futebol.
__ Ah. Eu chego no Rio
na sexta, posso comprar seu ingresso se você quiser.
__ Ok.
__ Por isso perguntei
se seu noivo ia, pra saber se seriam dois ingressos.
__ Ah. Entendi.
__ Enfim. Eu preciso
desligar, quando chegar me avisa. Vai ficar em hotel?
__ Não, meu pai tem
apartamento lá. Eu te ligo. Beijo.
“Seu noivo vai
também?” foi, certamente, a pergunta mais estúpida que já fiz na
vida.
No domingo ela me ligou
cedo, bem cedo. Dez da manhã, pra mim, é bem cedo. Disse que como não podia beber no
estádio a gente precisava encher a cara antes, eu mais do que ela
tendo em vista que meu time ia perder. Deus, que mulher fantástica.
A gente se encontrou na praia, ela de bermuda jeans e camisa do
Flamengo, absolutamente linda. Conversamos amenidades, o projeto de
arquitetura, o histórico do jogo que veríamos mais tarde, como o
sol tava bonito, como o Rio era bonito e ela tinha vontade de morar
lá, todas essas besteiras que existem pra gente conversar quando não
quer falar sobre o que realmente importa. Eu continuava me
encantando, mesmo sabendo que depois de tudo ela voltaria para o
noivo e eu continuaria sendo só o arquiteto responsável pelo novo
projeto do escritório dela. Não sou do tipo que faz essas coisas,
mas tava ali fazendo, e nem sei bem porquê.
O jogo - não vou
entrar em detalhes a respeito do jogo em si, porque meu time perdeu –
só serviu pra aumentar o estrago. Ela era apaixonada por futebol. E
estava completamente bêbada. E ficou lá, com a camisa do Flamengo
no meio da torcida rival, gritando, xingando o goleiro – que chegou
a fazer um gesto obsceno pra ela – xingando a mãe do juiz e por
aí. Era fantástica, absolutamente fantástica. Ao apito final do
juiz ela me olhou com o maior sorriso do mundo e me abraçou.
__ Hoje tem festa na
favela.
Eu sorri, e voltamos
àquele momento anterior, em que ficamos abraçados, ela sorrindo e
eu olhando pra ela, e o olhar dela me puxando. E eu sorri também. E
ela parou de sorrir de repente, e abaixou a cabeça. Eu soltei o
abraço.
__ Tudo bem aí?
__ Sim. Vamos indo? Tem
um bar aqui pertinho que é ótimo, cerveja bem gelada e o melhor
frango a passarinho do Rio de Janeiro.
__ Sabe, eu vou
voltando pro hotel. Amanhã tenho muito trabalho a fazer, preciso
descansar.
__ Vai ficar chorando
sozinho no quarto só porque seu time perdeu?
Ela voltou a sorrir. E
lá fui eu, no sorriso dela.
Saímos do bar era alta
madrugada, e dessa vez eu estava tão bêbado quanto ela. Ela jurou
que o bar ficava perto do apartamento onde ela estava hospedada e que
dava pra ir andando. Falei pra ela que tinha medo de ser assaltado e
ela falou que todos os marginais estavam comemorando o título, então
não haveria perigo. A cidade ainda soltava fogos pelo jogo.
__ Admiro essa
capacidade que você tem de rir de si mesma. Normalmente o pessoal se
estressa quando a gente faz esse tipo de brincadeira a respeito da
torcida.
__ Bom, posso até ser
marginal, mas sou campeã. Né?
Outro sorriso. E eu
afundando.
Andamos bastante, até
chegarmos numa parquinho caindo aos pedaços. Me sentei no chão e
ela no balanço.
__ Sobre o que
aconteceu com a gente da outra vez...eu não fui totalmente sincera,
sabe?
Tentei fingir que não
me importava. Falhei, porque ela continuava lá sorrindo, senhora de
mim.
__ Eu realmente liguei
pro meu noivo. Nós realmente conversamos. Mas eu não sei se eu
quero fazer isso.
__ Isso o quê?
__ Fazer dar certo com
ele. Eu pelo menos não devia querer, né? Poxa, ele cancelou o
casamento e disse que não queria mais saber de mim. Eu não devia
estar atrás disso. Ou devia?
__ Vocês conversaram
de novo?
__ Não...falei que ia
ligar, mas não liguei. Ele me mandou um e-mail dizendo que ia pra
fazenda no fim de semana, que eu podia ir pra gente conversar e ver
como ficava, aí eu respondi que vinha pra cá ver o jogo e quando eu
percebi a gente tava brigando por e-mail.
__ Hum.
__ Mas nem foi só por
isso que eu vim pro Rio.
__ Não?
__ Não.
Um minuto eterno.
__ Meu pai pediu pra eu
ficar de olho em você. Ele diz que você é um desses moderninhos metidos a mendigo por conta da barba.
O centésimo sorriso, o
tiro de misericórdia. Eu sorri também. Ficamos em silêncio por
muito tempo, até que ela se levantou impaciente.
__ Tô esperando a
música. Toda vez que eu bebo com você e a gente para numa praça
tem trilha sonora. Aí você me beija e eu me sinto uma diva do
cinema.
Eu também me levantei,
com toda a dificuldade do mundo pra não cair. Ficamos olhando ao
redor, de fato procurando a música. E nada. Só o barulho distante
dos fogos. Cansei de esperar e dei um passo à frente.
__ Bom, eu posso te
beijar assim mesmo.
__ É, eu acho que
pode.
E nos beijamos. E os
fogos de artifício, aparentemente, ficaram mais próximos, e
clareavam a praça, enquanto a gente se beijava. E ela me apertou
forte contra ela, e os fogos ali pertinho. E a música começou. E
ela me apertou mais forte ainda. Paramos de nos beijar e olhamos ao
redor. Nada, só o clarão dos fogos. Ela sorriu e me abraçou. E
falou no meu ouvido bem baixinho
__ Isso não é justo.
Eu adoro essa música.
__ Peço desculpa pelo
atraso. Faltou sincronizar.
__ Mas você ganha
pontos extras pelos efeitos especiais.
Me puxou pela mão.
Olhei pra ela ainda parado, perguntando pra onde a gente ia.
__ Vem. Vamos nos
perder por aí.
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