quarta-feira, 2 de maio de 2012

Do fim ao começo


Era uma vez... Assim como eram todas as vezes. Madrugada, você deitada na cama encarando o relógio no criado mudo. Eu chutava a porta, depois de tentar, sem sucesso, meter a chave no buraco da fechadura. “Calma, cacete. Já vou abrir”, lá vinha você, bodejando sei lá mais o quê, que de tão bêbado nunca lembrei.

Todas as vezes que eu me via preferir a mesa de bar a tua companhia, lembrava de quando largara meu mundo pelas tuas vontades. Tu querias sair do sítio. E lá fomos nós, jurando amor eterno, prometendo estudar, trabalhar, ter filhos, casar. Não necessariamente nessa ordem.

Nossos planos de amores feitos ao lado dos pés de amora, em cima dos jambeiros e ingazeiros, aos poucos se desfaziam no segundo andar do nosso prédio, onde as paredes me sufocavam. A rotina também. A cidade te tirou aquele ar de menina do campo, Soraia. Flores no cabelo, cara limpa, vestimentas singelas... Teus cachos, que eu tanto amava, você esticou. Tuas unhas agora combinavam com a boca vermelha. Até teu cheiro deixou de ser teu (e meu). 

Depois de meses de bebedeira continua pra fugir de nós, você já tinha aprendido. Com gente bêbada não se discute. E me deixava soltar os cachorros, despejar as cobras, os lagartos, enquanto você engolia os sapos, rãs e cururus. Engolia com maestria. Até um dia vomita-los todos na minha cara, enquanto dizia que engolir era fácil, difícil era digerir. E me mandou ir embora, sem saber que eu já planejava ir. Mas essa parte só veio agora porque eu comecei pelo final.

Até porque, diz o clichê, no começo tudo são flores. E nós éramos orquídeas crescendo sobre as árvores, em busca de sol. E brincávamos de esconde-esconde, corríamos pelo sítio, pulávamos pelados no açude, ríamos das piabas taradas mordiscando nossas coisas. Coisas estas, que descobrimos juntos.

A cerca que separava nossas terras tinha uma pequena falha. A falha mais certa de nossas vidas. Os dois faltosos pedaços de madeira que me permitiram adentrar teus lados em busca de uma pipa qualquer. Enquanto você, arengueira, ameaçava não devolver. “Eu que aparei, ela é minha”, gritava. E eu te mandei ir atrás das tuas bonecas, costurar roupinhas e me deixar em paz, com minhas coisas de menino.

Você dava de ombros. Dava língua. Mostrava o dedo do meio. Tinhosa, como sempre foi, batia o pé no chão e dizia não. E eu te odiei. Odiei por ter me feito, a partir dali, esquecer a pipa e as demais coisas de menino. Mas antes, corri atrás de ti, até cairmos no chão, nos atracando numa briga digna de filhotes de cães. A pipa já não tinha mais papel de seda, teus cachos enfeitados com folhas secas e você, ofegante, pedia trégua.

Deitamos lado a lado no chão. Tomamos minutos de fôlego em silêncio, até você quebra-lo com um riso baixo, que foi aumentando e aumentando devagar até se transformar na melhor das gargalhadas já registradas por minha memória auditiva. “Ta rindo de quê, em, menina velha?”. “To rindo da tua pipa, que ta só o bagaço. Nem tu nem eu vamos poder brincar”.

Eu lembro, Soraia. Eu lembro que foi assim. Lembro até do teu primeiro abraço demorado, quando terminei de consertar a escada da tua casa na árvore. Três degraus soltos, doze pregos, um martelo, um erro a cada cinco marteladas e um beijo no meu rosto a cada dedo machucado, pra aliviar a dor. Lembro que foi ali, naquela casa, que descobri teu corpo, o cheiro da tua nuca, teus beijos, tuas primeiras taras.

Foi assim.  Te escrevo em resposta aquela carta sem cabimento pra te dizer que não. É claro que eu não esqueci. Te contei de rabo a cabo, de trás pra frente como nossa história se deu porque, ao relembrar, eu sempre preferi terminar pelo início e começar pelo fim.

Beijos.

Jairo

3 comentários:

  1. Que bonito Rayssa. Bom te ter por aqui. bjs

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  2. Boa memória e inteligência emocional, sempre digna dos românticos. Gostei do post dona Rayssa. <3

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  3. "Eu sempre preferi terminar pelo início e começar pelo fim." Aí conhece!

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