__ Isso não está mais dando certo. Acho melhor cada um seguir seu rumo.
__ Do que você está falando, criatura, posso saber?
__ A gente. Isso. Não dá mais. Preciso de ar.
__ Amor, eu...
__ Tchau. A gente se vê.
Foi assim que ele terminou comigo. Por torpedo. Depois de dois anos, três meses e alguns dias de um namoro perfeito com o namorado perfeito. Ele terminou comigo assim. Do mesmo jeito que começou...assim.
Nos conhecemos numa festa de um pessoal que fazia cinema experimental. Logo no começo ele disse que odiava aquilo, essas festas com esse pessoal que faz essas coisas alternativas, mas o irmão dele era metido a intelectual que usa seda javanesa, e também era menor de idade, então ele tinha que acompanhá-lo por todos os cantos. Conversamos bastante, ele era divertido de um jeito fino e ácido, como eu sempre gostei, e tinha a língua ligeiramente presa [um charme, diga-se de passagem]. Dado momento a cerveja acabou, o cigarro também, ou seja, a festa teve seu fim prematuro decretado, ele meio que me seqüestrou [e ao irmão, que estava se atracando com uma senhora que fazia uma ponta num dos filmes] e fomos parar num bar que eu não conhecia, escondido no centro da cidade. Lá, música alta, fumaça, uma jukebox e um barman imenso que não foi com a minha cara desde o primeiro dia. Sentamos ao balcão e ele pediu uísque para nós dois e coca com gelo para o irmão, que se recusou a beber o líquido imperialista e ficou na água de torneira.
O uísque veio puro. Ele dizia ser absurdo deixar o uísque curtindo doze anos no carvalho pra se jogar gelo, água, energético ou refrigerante naquele líquido abençoado. Eu, como nunca havia bebido uísque na vida, não pude perceber a diferença. Ele também disse que nunca havia se embriagado com uísque puro. Eu acreditei, não só porque a maconha fazia efeito, mas porque ele era o ser mais incrivelmente incrível que eu já conheci e eu queria muito, muito, muito mesmo que ele ficasse impressionado comigo.
Saímos do bar já era madrugada alta, voltamos caminhando até minha casa, ele me beijou no portão, disse que gostou de mim, no dia seguinte pediu minha mão em namoro pra minha mãe conservadora e dois anos, três meses e alguns dias depois ele terminou comigo. Por torpedo.
Custou até eu entender o que acontecia, porque ele era perfeito e jamais me machucaria. Eu ainda achei que ele precisava de espaço, como nos filmes bregas, e fiquei inventando desculpas para a atitude irracional dele. Não fazia sentido. Até que eu conheci a cantora-performática-que-parece-paquita. Aí, tudo fez sentido.
Porque ele me trocou por ela. Numa dessas festas ridículas que o irmão dele freqüentava, ele conheceu esse ser de cabelo amarelo e bota branca, uma perfeita barbie boliviana, e se encantou com ela e desencantou comigo. Ele não atentou para o fato de que ela se vestia como paquita, ou era desafinada, ou tentava bancar a alternativa-maníaca-sexual. Ele só se encantou com ela e terminou comigo.
Dias depois fui a um show da banda-alternativa-perfomática-de-garagem da barbie fajuta. No mesmo bar onde ele me levou a primeira vez. Pedi uísque sem gelo e o barman que me odiava mal me olhou, jogando dois icebergs no meu copo. Quando olhei para o palco pude vê-lo ao lado, um perfeito tiete, com seu all star estúpido desamarrado. Tentei a todo custo não chamar a atenção dele, mas quando ela começou a cantar eu comecei a vaiar. E ele me viu. E eu quis mostrar a ele que eu não o amava mais, e que se ele não terminasse comigo eu ia terminar de qualquer jeito.
Daí ele fez que não me viu. E eu fiz que não o vi. E pedi mais uísque. E ele voltou a olhar pra ela, que cantava olhando pra mim, enquanto eu olhava com ódio para os blocos de gelo boiando no copo. A canção acabou e eles se beijaram. E eu passei a odiá-lo mais que aos pobres gelinhos que já se derretiam.
A essa altura eu já estava no terceiro uísque [com gelo], amaldiçoando todas as formas de vida humana, especialmente as deploráveis. Ele chegou com seu jeitinho de cão sarnento e eu só conseguia pensar em socá-lo repetidamente. Eu só pensava em deixar clara a mentira que eu tentava pregar, eu queria fazê-lo acreditar que eu não me importava mais, ouviu bem? EU NÃO DOU A MÍNIMA. Na minha humilde opinião de espectadora ele podia abandonar a vida de merda que a gente construiu junto pra viver seu conto de fada às avessas com aquela bruxa mascarada que fazia as vezes de princesa do reino encantado do caralho a quatro. E quando ele se chegou, tão manso, eu pensei com todas as minhas forças no quão agradável seria se ele morresse bem ali, naquele exato momento e com bastante dor, para ficar retido no inconsciente da minha memória para os dias vindouros e menos divertidos. Julguei ter pensado alto, pois ele se abaixou de repente, mas era só pra amarrar os cadarços de seu all star estúpido. Droga, eu adorava o jeito estúpido dele amarrar cadarços.
Pedi mais um uísque ao homem imenso atrás do balcão, que me olhou do alto com seus bigodes de morsa e me pediu pra segurar a onda, ao que retruquei perguntando idiotamente se ele já havia sido abandonado pelo cara-mais-que-perfeito-que-ele-amava-desesperadamente. Ele sorriu condescendente e me ofereceu água, enquanto o outro, o idiota do all star, andou até o palco e abraçou sua nova-namorada-maravilha-de-pessoa-e-cantora-performática. E foi a vez dela vir até mim, eu tenho cara de ímã ou o quê, ora porra?! Ela veio gingando na sua bota branca estúpida de assistente de palco de apresentadora loura de programa infantil, como eu queria socá-la também, bater nela com aquela bota branca estúpida que ela usava, ela me perguntou se eu gostei do show e eu pensei "vê se morre", mas dessa vez pensei em voz alta e ela ouviu, porque eu não pensei e sim gritei, ela deu um passo para trás com cara de virgem que descobre o que é o verdadeiro sacrifício, pobre vítima. Ele puxou meu braço, isso-não-é-coisa-que-se-diga-ora-bolas, mandei todos para o inferno e fui atrás de outro bar. Consegui uísque sem gelo e fiquei ouvindo Air Supply. Desabei no choro. A culpa não era do uísque, nem do Air Supply. A culpa era do gelo, eu tenho certeza.
Uísque com gelo e cigarro e música alta e músicos bêbados e ripongas sujos e aquela boneca barbie fajuta com sua bota branca de paquita, tudo aquilo voltou com violência tamanha quando cheguei em casa. Air Supply continuava bombeando meu cérebro, como pode uma música ser tão ruim e ao mesmo tempo tão tocante? Nunca tinha me embriagado àquele estado. E não, não era culpa dele, do meu ex-namorado perfeito que de tão perfeito me trocou por alguém mais perfeita que ele, a barbie de cabelo amarelo e bota branca. Eu estava convicta que a culpa era do gelo.
Vomitar não é glamouroso, aposto que a assistente de palco da Angélica não vomita, nem tem gases, nem arrota, nem faz metade das coisas que fiz nessa noite longa, perdida e suja. Mas duvido que ela sinta metade das coisas que sinto agora, duvido que ela sinta esse amor, ainda essa vergonha, ainda essa tontura que não é de embriguez mas de encantamento diante daquele ser de all star estúpido com os cadarços infantilmente desamarrados. Duvido que ela já tenha rodado bares e bares só pra não ter que encarar a solidão de um quarto agora desocupado.
Também duvido que ela use palavras tão bonitas pra justificar uma bebedeira. Eu não existo, sou uma farsa.
Passei uns dias em casa curtindo o escuro e o silêncio, sem pensar em all star, uísque ou botas brancas. Me sentia um tanto ridícula depois do ocorrido em metade dos bares bem freqüentados da cidade [os mal freqüentados não me preocupavam]. Tinha aquela vontadezinha fajuta de ligar pra ele, de pedir desculpa, mas logo vinha a vontadezona de bater nele todo de uma vez só, pra economizar força e poder cuidar dele quando ele estivesse bastante machucado. Não sabia exatamente o que eu queria fazer, por ora só queria estar ali, no escuro. Assim ninguém me via chorar.
Depois de quase um mês sem notícia, dei de cara com ele em uma festa alternativa, daquelas que ele dizia odiar mas passara a freqüentar por causa da namorada-barbie-cantora-performática. Ela não usava sua bota estúpida desta vez, mas um penteado à moda 80 que me deu tanta pena que sequer consegui rir. Ele veio ter comigo e disse coisas simpáticas que ex-namorados dizem a suas ex-namoradas psicóticas, eu ouvi metade do que ele falou sem prestar atenção verdadeiramente. O som alto me incomodava tanto que eu tive de sair dali, e urgentemente.
O casal também não ficou na festa muito tempo. Eles foram caminhando pela rua mal iluminada, de mãos dadas e sem pressa, em direção à casa dele, que não era distante. Havia muita intimidade ali, muito conhecer um do outro, e eu inflei de ódio, porque eu já tinha visto aquela cena antes, aquele caminhar noturno, lembrei do nosso primeiro beijo no meu portão. Avancei com o carro sobre eles, atropelando meu ex-namorado perfeito, sendo que a última recordação que tenho era do all star dele voando após o impacto. Aumentei o volume do som, tocava Bob Dylan na rádio, dirigi até o bar mais próximo e pedi um uísque duplo. Sem gelo.
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Fe-no-me-nal Dani. Também já atropelei muita gente desse jeito.
ResponderExcluirParabéns.
Cara... que bom que esse cara terminou contigo. Se você ainda estivesse com ele, com certeza não tinha escrito isso. Como digo, vão-se os namorados, ficam os textos.
ResponderExcluir@julianelpa
It´s all over now, baby blue...
ResponderExcluirPerfeito, desde o enredo até a trilha!!!
Beijoss!! ;)
Gostei disso.
ResponderExcluirÊ odio, sempre inevitavelmente necessário...
ResponderExcluirQuem não odeia não consegue amar...tampouco quem não é odiado pode ser amado...
caralho, Dylan pra terminar ainda por cima...nossa...
ResponderExcluirDaniel Guise