terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Futuro pretérito

E se eu tivesse coragem, te chamaria pra ver o filme que milagrosamente está em cartaz na sala de cinema fria. E compraríamos pipocas e cocacola e até ficaríamos meio sem jeito no início, mas depois as coisas tenderiam a se acertar e estaríamos de novo à vontade, como é de costume. E depois caminharíamos até um bar, ou uma sorveteria, ou um lanche (como diz o pessoal daqui) conversando sobre o filme, nossas impressões sobre o roteiro, a fotografia, a direção, quase sempre deixando a atuação de lado, fora de foco, porque somos assim e realmente temos isso em comum. E durante a caminhada iríamos vislumbrando mais e mais quanto de cada um tem no outro, e sentiríamos aquela ânsia na boca do estômago, ainda sem saber se boa ou ruim, sabendo apenas que é ânsia e se é ânsia tem uma razão de existir, talvez oculta ou clara demais, mas sempre a ponto de cegar. E depois de umas cervejas e uns cigarros a conversa já estaria solta e falaríamos sobre projetos e música e cinema e sentimentalidades e todos os assuntos sobre os quais costumamos conversar quando somos somente nós, deixando os outros nós e todos os outros seres viventes em suspenso, à deriva. E novamente a sensação incômoda de espelho, assim como tenho com minha melhor amiga e você deve ter com mais alguém, e novamente a sensação de medo de estar se mostrando a alguém que, embora grata surpresa, é um ilustre desconhecido. E ao chegar em casa, na sua ou na minha, iríamos sorrir daquele jeito que as pessoas sorriem quando estão sem-graça e tentando disfarçar o quanto aquela situação, por mais constrangedora que seja, é exatamente a situação que você esperava. E quase como num romance você me beijaria devagar, relembrando meu gosto, e me apertaria contra o peito como se fosse morrer se me soltasse. E eu me faria completamente sua, sem cerimônia, porque não há razão alguma em lutar contra isso, eu acredito nisso, eu me diria isso repetidas vezes em silêncio e no escuro, só a brasa do cigarro por companhia. E por acreditar nisso eu sentiria toda a intensidade do teu toque e conseguiria definir o desenho perfeito da tua língua entre os meus dentes. E você me sorriria e perguntaria, quase num sussurro, que mistério é esse que há entre nós que nos fez tão próximos em tão pouco tempo. E eu te responderia que também ando me perguntando isso, a cabeça irrequieta e o coração pateticamente exposto. E você tentaria fingir que as coisas não são assim, e eu pensaria na ingrata criatura que tu me serás futuramente, e já até sinto o gosto de cinzeiro de tantos cigarros comidos quando você findar por me machucar. Mas àquela hora, àquela hora em que estaríamos somente nós na escuridão quente do teu quarto ou do meu quarto, eu me esqueceria da ingrata criatura que tu me serás e só pensaria na grata surpresa que tu me seria naquele momento de mel e suor. E pensaríamos em todas as coisas que haveriam de ocorrer dali em diante, de como estaríamos mais próximos porém mais distantes quando todos juntos, naquelas noites de cerveja e divertimentos mundanos. E tentaríamos fingir que somos imunes a isso, melhores que isso, somos adultos e maduros, ninguém acreditaria nas ânsias que sentíamos se não disséssemos aos outros. Mas findaríamos por seguir, com medo e possíveis dores, porque haveria essa vontade soberana e inexplicável de nos sentirmos vivos. Porque seríamos esse tipo de gente assim, que sangra pra se sentir vivo. E deixaríamos sangrar.

Texto escrito em 2008, quando meu relacionamento ainda nascia.

4 comentários:

  1. Gostei bastante.
    ótimo texto, ótima escrita.
    :)

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  2. Dani, voce, seus textos, tem a incrivel capacidade de me fazer acreditar que namorar pode ser uma coisa legal... hahah. Sempre penso bastante depois que leio uma coisa sua. Fico absorvendo o conteudo. Refletindo. Ja te disse com outras palavras e sem medo de ser piegas, que pra mim ler seus textos é tao interessante, inquietante e reverberante quanto os da senhora Lispector, que eu adoro adoro adoro.Gosto tanto quanto. Sou sua fã.

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