Na madrugada de hoje, tem chuva, raio, trovão, e tem passarinho cantarolando também. O melhor não há de vir depois da tempestade: se revela é dentro dela.
quarta-feira, 15 de setembro de 2021
sexta-feira, 10 de maio de 2019
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Mensagem de voz (1:34)
Eu fiquei na dúvida se te escrevia um e-mail, se passava na
sua casa, se procurava uma música pra mandar indireta no twitter, daí achei
mais fácil e prático mandar um áudio, até porque o que eu tenho pra dizer é bem
simples.
Num ponto você tá certa e eu não tiro tua razão, sabe? Eu não
vou mentir pra você que eu não amo mais a minha ex-mulher, nem vou dizer que eu
já processei tudo que aconteceu e agora é só brisa. Tô no caminho. Nem quero
que você me pegue pela mão também e me guie pela estrada de tijolinhos amarelos
porque não é tua função na tua vida e eu nem sei se você quer uma função na
minha.
O negócio é que te encontrar foi uma coisa louca e incrível
e eu não paro de pensar nisso, e quando eu me pego pensando nisso eu sinto
aquele negócio no estômago. E tudo é urgente. Quando eu vi teu e-mail eu abri
correndo pensando que era um convite pra uma noite de bebedeira e suor, daí
fuén. Fiquei uns dias trabalhando as ideias porque eu não quero te machucar,
mas eu não posso, não devo, não vou dizer pra você que vai dar tudo certo e
ninguém vai se ferir no processo. Até porque, até onde me consta, eu posso me
apaixonar perdidamente por você em dois meses e aquele músico lá voltar da
turnê pelo coração das outras e querer tocar só contigo, e aí quem voa sou eu. Entende
meu ponto? Nessa vida ninguém tá seguro. A não ser que você seja uma cigana que
leu meu destino na palma da minha mão.
O que eu sei, a única coisa que eu posso te garantir, é que
nesse momento eu quero você. Eu quero você demais. Eu quero você na minha cama,
na sua, no meio da rua, eu quero você do jeito que você vier – se for sem medo.
Não quero que você sinta medo de mim. Queria que você sentisse a mesma fome que
eu sinto do teu gosto. A única coisa que eu posso te pedir é que a gente siga e
veja onde dá. Mas é claro que se você não se sentir segura eu vou respeitar, e
entender, e acostumar meu corpo à tua lembrança.
Mas ai.
Mensagem de voz (0:10)
Ah, sim, gostei muito do repertório que as meninas mandaram,
acho que a festa de lançamento vai ser ótima e eu queria muito te ver e comer
teu cabelo e beber teu suor. É isso. Boa noite.
***
Tô trabalhando nessa historinha há algum tempo. Aqui tem a primeira parte. A segunda parte você pode ler aqui.
quarta-feira, 17 de abril de 2019
Desjejum
Quando você me abraçou, o seu cabelo tinha cheiro de cachaça e maconha. Encostei meu rosto ali, sentindo os fios ralinhos e percebi que você estava começando a ficar careca. Deitada na cama, me derreti nos seus braços. Você murmurou alguma coisa, falou que precisava acordar cedo, tinha um compromisso. E eu entendi que daquela vez não iriamos tomar café da manhã juntos. Tentei disfarçar minha decepção, porque eu realmente gostava da forma como você passava café e explicava sobre a importância da temperatura da água, aquele tipo de coisa que só quem trabalhou como barista entende. “Mas eu aprendi com a minha mãe”, você sempre explicava, não importava quantas vezes fizesse o café. Talvez porque suas visitas eram tão distantes que você esquecia que já tinha me contado aquela história. Não, dessa vez você levantaria assim que o despertador tocasse, me daria um beijo nas costas e iria colocar a roupa. Meio dormindo, eu iria perguntar se você gostaria de tomar um banho e, como sempre, você diria que não. “Vou tomar em casa mesmo”. E com um beijo desajeitado iriamos nos despedir na porta de casa. Eu voltaria a dormir e quando acordasse, algumas horas depois, não saberia se a sua visita no meio da noite tinha sido um sonho ou realidade.
***
A Veriana Ribeiro voltando em grande estilo pra Confraria
quinta-feira, 11 de abril de 2019
Oie
Estou desde domingo à noite tamborilando esse e-mail pra você. Não tem cigarro, não tem uísque, não tem comédia romântica na tevê que me ajude a dizer o que eu quero dizer.
Talvez eu queira dizer que eu pensei em você todos os dias depois daquela noite no bar, daquele abraço na porta da minha casa. Pensei no seu cabelo caindo no olho, no seu nariz perfeito, na sua aliança dourada. Pensei se sua aliança tinha o nome da sua ex gravado. Pensei no seu casamento acabado e em você acabado. Pensei no que dissemos e no que não dissemos. Pensei que eu queria te ver de novo, naquele mesmo dia, quem sabe num parque, quem sabe na padaria onde eu comi aquele sonho coberto das suas lágrimas. Pensei, pensei e pensei. Pensei no que eu queria e no que eu não podia.
Quantos dias se passaram? Eu esqueci de contar porque eu eventualmente pensei que não devia pensar, então voltei pra mim, pros meus gatos, pra minha banda, pros meus dias bestas. Recebi uma ou outra ligação, uma atendi, outra recusei. Revisei um livro doído de tão ruim, vi um documentário sobre uma menina desaparecida, vi clipes de músicas oitentistas no youtube, vi minhas amigas e não disse a elas nada sobre você, porque não queria nem o estímulo nem a censura, você era um segredo meu, um desejo meu que eu não poderia partilhar com ninguém porque eu não poderia partilhar com você.
Duas semanas, eu acho, foi o tempo que demorou pra você me procurar, porque não trocamos telefone naquele dia. Posso dizer que foi conscientemente, só pra mentir, só pra fingir que eu não queria ter subido com você e visto como você fica na minha cama. Posso dizer que foi conscientemente pra quem um dia me perguntar – “não tinha como trocar telefone, foi o melhor a fazer”. Mas não foi conscientemente porque eu estava ébria de uísque e de um sentimento novo, um pulsar diferente no meu peito, uma urgência na garganta de dizer “vem”. A mesma urgência que me fez procurar suas redes sociais revirada na cama, a mesma urgência que me fez não seguir, não adicionar.
Duas semanas até eu te ver na entrada da padaria, numa sexta-feira ensolarada, um café na mão e um sorriso que ainda agora eu não consigo decifrar. “Não tenho seu telefone, lembrei que você tinha combinado de me encontrar aqui no dia seguinte às 8h, então achei que você costumava vir aqui sempre. Não sou stalker, eu juro, é porque vamos lançar nosso app daqui dois meses e queria saber se sua banda não quer tocar na festa”. “Que ótimo, mas você nem conhece minha banda”. “Verdade! Me apresenta?”. Sentamos no balcão, te mostrei uns vídeos, te mandei o link pra baixar as músicas, eu não pensei e devia ter pensado. “Vou trabalhar agora”. “Podemos nos encontrar no almoço pra fechar então o show?”. “Claro, me passa seu telefone, daí você para de me perseguir”.
Do almoço pro bar no fim da tarde pra nós dois na minha cama eu não lembro como foi. Eu lembro de você na minha cama, do seu cabelo suado caindo sobre os seus olhos, do seu nariz perfeito roçando no meu rosto, das suas unhas penetrando as minhas costas. Me lembro da sua figura na janela recortada contra a noite enquanto fumava um cigarro e eu te chamava de volta, e você voltou pesaroso, e eu perguntei o que houve, e você disse que há meses não se sentia tão vivo. E talvez por isso você tenha me agradecido, ao que eu me senti uma acompanhante de luxo, prestando um serviço pra um divorciado, um momento de esquecer a mulher que tanto amava e não o queria mais. Você me olhou com olhos ternos, como se sentisse o que eu senti, e me disse que estava genuinamente feliz.
A culpa deu lugar a uma estranha euforia, e de repente eu soube que você ficaria naquela cama até a vida nos denunciar. Sexta à noite. Sábado de manhã, de tarde, de noite. Domingo de manhã, de tarde, de noitinha. Você recebeu uma ligação do sócio e precisou correr, e eu não dormi nada, e já se vão dois dias desde que você me beijou na boca e saiu apressado, e acordei hoje pensando que eu devia escrever pra você pra dizer.
Pra dizer que eu tenho medo.
Tenho medo porque não sei como manejar uma relação – de qualquer natureza – com alguém emocionalmente indisponível. E não é que eu queira que você me ame hoje, eu certamente quero que você me deseje hoje, e talvez fosse simples passar a noite inteira com você até meu corpo desistir e eu dormir pesadamente por horas. Talvez eu não me apaixone por alguém que já ama uma terceira pessoa que não está envolvida na equação. Talvez.
Mas talvez eu queira romance, um namoro de mãos dadas, talvez eu queira um domingo no parque, um cinema na última sessão pra gente não ver o filme, eu não sei. Nesse momento tudo sobre você em mim está suspenso e eu não sei se apenas quero o que você tem pra me oferecer ou se estou entrando de cabeça num caminho onde espero o que você não pode me dar.
Que louca.
Talvez eu tenha medo porque você é a criatura mais apaixonável que já cruzou minha existência, e eu sou de arroubos – logo se vê.
Talvez eu tenha que esclarecer que não me apaixonei por você. Pode ser que nunca, inclusive, porque sou de arroubos mas também de um zelo por vezes excessivo. Mas eu tenho que esclarecer que, no momento, não sei lidar com o que eu quero de você.
Acho que podemos manter uma respeitável relação profissional, por ora, já que você me contratou no almoço e me comeu no jantar, e eu já mandei a notícia pras meninas da banda e elas estão super empolgadas porque seu app no fundo é incrível e elas montaram um repertório bem wild party pra combinar com o que vamos lançar daqui dois meses.
Acho que podemos conversar pelo whatsapp, pra eu não ver seu cabelo caindo no olho, pra eu não lembrar do seu nariz perfeito, pra eu não pensar em você dentro de mim.
Acho que podemos somente o que não queremos.
Beijos,
Lila.
****
A primeira parte dessa história você pode ler aqui
sábado, 2 de fevereiro de 2019
Sonho de padaria
__ Mas o que diabos tá acontecendo aqui?
Ela parou antes de atravessar a rua. Do outro lado da pista havia uma pequena comoção na frente da padaria. Por um momento ela achou que algo tivesse acontecido com o Seu Borges, o dono da padaria, que ela conhecia há anos. Até que o viu sair do estabelecimento e tentar, em vão, afastar as pessoas dali.
__ E o que foi, Borginho?
__ Tem um cara aí chorando, Dalila, e as pessoas tão filmando pra postar na internet.
__ Uai.
__ Pois é, não sei pra quê também.
O cara estava sentando numa cadeira alta em frente ao balcão, um sonho recheado com creme intocado à sua frente, chorando copiosamente. Ela sentou na cadeira logo ao lado e olhou pro rapaz com um sincero e inesperado interesse.
__ Borginho, traz um café pro amigo aqui.
Seu Borges trouxe um copo americano com café transbordando e balbuciou “vou deixar vocês a sós”, ao que ela riu, já que havia ao menos 5 adolescentes do lado de fora filmando toda a cena.
__ Ei, tá tudo bem? Você tá precisando de alguma coisa?
__ Não, eu...tá tudo bem.
Só então ele se deu conta da presença dela. Logo depois se deu conta da presença de todas as outras pessoas. Assoou sem jeito o nariz e voltou a fitar o sonho.
__ Esse sonho é muito bom.
__ Acredito que sim.
__ O café também é bom pra cacete.
__ Uhum.
__ E aquelas meninas estão fazendo stories sobre você agora.
__ Ah. É. Não é legal, isso.
__ Não.
__ Vou pedir essas coisas pra viagem.
__ Mas você tá bem mesmo?
__ Olha, não, mas chorar no balcão da padaria e virar meme de internet não vai ajudar então é melhor eu fazer alguma coisa.
__ Ok.
__ Desculpa. Hoje deve ser o pior dia da minha vida, mas é claro que a culpa não é sua, você na verdade está sendo bastante gentil.
__ Tudo bem. Você quer conversar sobre o seu dia tão ruim?
__ Cara. Talvez eu precisasse. Mas acho melhor não.
__ Tudo bem também. Mas bebe pelo menos o café.
__ Vou beber. Obrigado.
Ele deixou uma nota de 2 reais sobre o balcão e saiu apressadamente da padaria, as adolescentes rindo enquanto finalizavam seus stories no instagram. Ela deu de ombros, puxou pra si o sonho que ele não comeu e se arrependeu na primeira mordida.
__ Borginho, me vê outro sonho que esse aqui tá salgado de lágrima.
***
__ Ah, que bom que você ainda tá aqui.
__ Sim, tentei comer seu sonho mas não tava bom.
Ele riu.
__ Eu tava chegando na estação quando me dei conta que não paguei pelo sonho.
__ Imagina dever um sonho.
__ Enfim. Queria só te agradecer pelo cuidado. Obrigado, mesmo.
__ Por nada.
__ Meu nome é Adriano.
__ Oi, eu sou a Dalila.
__ Ok. Obrigado, mais uma vez.
Ele já estava na calçada quando olhou pra trás. Os dois estavam rindo. O Seu Borges também.
__ Continuo devendo um sonho.
__ Eu já paguei.
__ Então eu devo um sonho pra você.
__ Me paga amanhã. Passa aqui por volta das 8.
__ Certo.
__ Certo.
Ela pediu outro café, e foi até a porta da padaria pra fumar. Seu Borges parou do lado dela, preocupado.
__ Essa história de sonho aí, não sei não, viu.
__ É só um café e um sonho.
__ Você viu o tamanho da aliança que ele usa?
__ Ah bom, então se eu comer um sonho na padaria com um cara é por que eu quero casar com ele?
__ Eu sei que você não quer casar. É só pra você ficar ligada.
__ Tá tudo bem, Borginho. Sou uma mocinha esperta.
***
Ele não passou lá no dia seguinte, nem no próximo, nem em dia nenhum das duas semanas que se seguiram. Nos primeiros dias ela sentiu um ligeiro incômodo, mas logo a vida seguiu e ela esqueceu. Até que, numa sexta-feira qualquer, quase um mês depois do incidente da padaria, eles se esbarraram na frente de um bar.
__ Dalila?
Ela o abraçou, um pouco mais efusiva do que esperava, e ficou surpresa consigo mesma. Mas manteve o abraço, que ele retribuiu sem estranhar.
__ Falando sério, que bom que você está vivo.
__ Desculpa não ter aparecido, fiquei super atolado com milhares de coisas. E não tinha seu telefone pra avisar que não ia dar pra ir.
__ Não, que isso, sem problema. Como você está?
__ Continuo miserável, mas adotei a atitude positiva de encher a cara e não falar sobre isso.
__ Meu Deus, você faz péssimas escolhas.
__ Verdade. Quer uma cerveja?
Eles encontraram uma mesa na parte de trás do bar e conversaram sobre amenidades por um tempo. Ela observou que a aliança continuava reluzente na mão esquerda dele. Ele observou que ela não tinha aliança. Ela recebeu mensagens, que ignorou. Ele não recebeu mensagens, mas foi abordado com muita empolgação por dois outros caras.
__ O que foi isso?
__ Ah, esses caras são da minha cidade. Eu moro em São Paulo há dez anos, mas sou de São Roque. De vez em quando encontro conhecidos por aí.
__ Entendi.
__ E você? É daqui?
__ Sim, sim. Nascida e criada.
__ E você faz o quê?
__ Eu trabalho pra uma editora. Na vida real, né. De noite eu combato o crime com uma bandinha. Toco baixo.
__ E o que a sua bandinha toca?
__ A gente toca músicas imortalizadas por grandes cantoras. Sabe? Madonna, Aretha, Diana, Beyoncé, Solange do Aviões.
__ Ok.
__ Mas a gente se veste de Elvis. A banda toda, só de meninas, todas vestidas de Elvis, cantando músicas famosas em vozes femininas.
__ Ok, ok. Interessante. Gosto.
__ E você?
__ Eu sou desenvolvedor de software. Estamos criando um app de delivery de gerenciamento de festas que saem do controle.
__ Isso é sério?
__ Você não faz idéia do quanto o mercado de festas que saem do controle é inexplorado. No nosso app você vai poder pedir bebida, comida, contratar uma equipe que faz pequenos consertos durante ou depois da festa, segurança, tudo que for preciso pra festa continuar descontrolada mas com um pouco de sabedoria.
__ Que ótimo!
__ Você vai ser minha primeira cliente.
__ Não vejo a hora de dar uma festa na mansão dos meus pais enquanto eles viajam só pra poder chamar a equipe que vai consertar o ovo fabergé que o idiota do meu namorado quebrou.
Ele deu um longo gole na cerveja.
__ Seu namorado vem te encontrar aqui?
__ Não, eu não tenho namorado. Nem pais que moram numa mansão com um ovo fabergé.
Ela deu um longo gole na cerveja.
__ E a sua esposa, que horas vem?
__ Provavelmente nunca – ele tentou rir mas soou como um latido.
__ Como assim? MEU DEUS, ELA MORREU.
__ Não! Não. Nós estamos nos divorciando.
__ Ah. Ufa.
__ Que alívio, né.
__ Olha, desculpa, mas é sim. Imagina a minha indelicadeza.
__ Enfim. Era por isso que eu estava chorando na padaria aquele dia. Eu tinha acabado de voltar do cartório.
__ Ah. Faz sentido. Desculpa. Por esse diálogo horrível, pelo que aconteceu na padaria, pelo seu divórcio. Sinto muito.
__ Tudo bem.
__ E o que houve? Quer dizer, a não ser que você não queira falar sobre isso.
__ Não...acho que não tem problema. Acho que no fim a gente foi deixando de ser casal, sabe? Não acho que tenha acontecido nada grave com a gente não. A gente se amava e se respeitava muito, a gente era feliz, a gente tentava fazer dar certo. Mas acho que ela foi me vendo mais como amigo que como amante com o passar dos anos.
__ Vocês ficaram quanto tempo juntos?
__ 3 anos de namoro e 11 de casamento.
__ E vocês se separaram numa boa?
__ Então...ela é o amor da minha vida. Quando ela disse que queria se separar eu talvez tenha insistido um pouco pra tentarmos mais. Fizemos terapia, viajamos, eu fiz um tempo de home office, o que obviamente só atrapalhou. Até que ela disse que não tinha como mesmo. Fiz uma mala e fiquei uns dias na casa de um amigo, mas achei que ela talvez só precisasse de um tempo pra si, até que os papéis do divórcio chegaram. Passei as duas últimas semanas procurando apartamento e tal.
__ Então foi rápido.
__ A gente passou o último ano agonizando. Parecia uma eternidade. Mas desde que ela me disse que era definitivo até o dia de hoje eu nem sei dizer o quanto passou, porque parece que só durou um respiro.
__ Olha, sinto muito mesmo.
__ Ah, que isso, tá tudo bem. Já me acostumei à idéia de viver sem ela.
__ Já?
__ Não, na verdade não. Mas o que se há de fazer, né mesmo? Eu tô bebendo ininterruptamente há três dias.
__ Bom, retiro o que disse, suas escolhas parecem razoáveis diante da situação.
__ Agora é a sua vez de contar sua grande tragédia.
__ Ah...é...bom, não sei se tem tragédia não. Minha família é meio normal, meus amigos são ótimos, eu amo meu trabalho e minha banda, tô solteira há um ano, tenho 5 gatos e é isso.
__ Ninguém partiu seu coração?
__ Sim, sim. Um músico. Foi horrível, mas daí pra nunca mais, né? Pra mim basta uma vez. Especialmente depois de um músico.
__ Músicos são dureza mesmo.
__ Só os homens.
Eles sorriram. Beberam mais, falaram mais, sorriram mais, ele tocou o braço dela repetidas vezes, ela afastou o cabelo dele dos olhos repetidas vezes. Ela se sentiu imprudente, ele se sentiu aliviado. Saíram do bar já era quase de manhã, caminharam juntos até a casa dela, falando alto na rua, de braço dado, com uma intimidade criada naquelas horinhas de álcool e fumaça de cigarro e música alta. Ele tinha um senso de humor incrível e ela era afiada, eles conversaram sobre amor, medo, morte, impostos e Plutão, ela mostrou fotos dos gatos, ele disse que sua banda preferida era Charlie Brown Jr só pra ela rir, ela cantou e dançou Elvis na esquina do apartamento dela e por fim eles se abraçaram longamente na despedida.
__ Você não vai me chamar pra subir, né. Que nem nos filmes.
__ Não.
__ Tudo bem.
__ Você ainda usa a aliança.
__ Eu sei. É hábito.
__ Negação.
__ Talvez. Capaz.
__ Mas foi uma noite ótima.
__ Foi sim. E eu continuo te devendo um sonho.
__ Olha, acho que você talvez precise mais do sonho que eu.
__ Talvez. Capaz. Mas acho que não. Hoje você me deu outra coisa.
__ Foi? Mas a gente nem subiu.
__ Foi. Você me deu fôlego.
Ele a beijou na bochecha, ela fechou os olhos e prendeu a respiração, quase esperando o desvio, quando deu por si ele já tinha dobrado a esquina.
__ Eita nós.
domingo, 19 de agosto de 2018
A thing of beauty
__ Ai, eu amo essa música.
Você vinha pelo jardim, o sol fraco da manhã chegando na gente aos poucos. Você vinha pelo jardim com um copo na mão e o olho semi-cerrado, tentando enxergar na claridade recém-acordada. Você vinha pelo jardim e parou quando a música começou, e você fechou os olhos e sorriu, e virou a cabeça para o lado como se dançasse. E ali, bem ali, eu vi meu destino inteiro. "Ai, meu coração", eu disse. Bem ali eu descobri que te amaria pra sempre.
Eu levei você pra casa e coloquei a música pra você dançar. E você dançou, e você me puxou pra dançar, e dançamos juntos. E nos amamos. Horas, dias, meses a fio. Eu te amei com urgência e uma ligeira adoração, fiz daquela cama um altar onde você reinava solene, os olhos semi-cerrados enquanto eu, de joelhos, adorava você. Você me amou sem pressa e sem grandes surpresas, seus olhos semi-cerrados em busca das janelas por trás da cortina enquanto eu, de joelhos, adorava você.
Você me amou sem pressa, e até o fim.
Eu te amei com uma urgência sem fim.
Você cansou do amor que eu sentia, e você partiu numa tarde de sol quente, óculos escuros guardando lágrima nenhuma, e você partiu sem parar, e eu vi meu destino inteiro ali. Bem ali eu me lembrei daquela manhã, daquela música, do teu olhar semi-cerrado e do teu sorriso de canto de boca. Eu gritei teu nome, você virou a cabeça como se dançasse - e partiu.
Ai, meu coração.
Você vinha pelo jardim, o sol fraco da manhã chegando na gente aos poucos. Você vinha pelo jardim com um copo na mão e o olho semi-cerrado, tentando enxergar na claridade recém-acordada. Você vinha pelo jardim e parou quando a música começou, e você fechou os olhos e sorriu, e virou a cabeça para o lado como se dançasse. E ali, bem ali, eu vi meu destino inteiro. "Ai, meu coração", eu disse. Bem ali eu descobri que te amaria pra sempre.
Eu levei você pra casa e coloquei a música pra você dançar. E você dançou, e você me puxou pra dançar, e dançamos juntos. E nos amamos. Horas, dias, meses a fio. Eu te amei com urgência e uma ligeira adoração, fiz daquela cama um altar onde você reinava solene, os olhos semi-cerrados enquanto eu, de joelhos, adorava você. Você me amou sem pressa e sem grandes surpresas, seus olhos semi-cerrados em busca das janelas por trás da cortina enquanto eu, de joelhos, adorava você.
Você me amou sem pressa, e até o fim.
Eu te amei com uma urgência sem fim.
Você cansou do amor que eu sentia, e você partiu numa tarde de sol quente, óculos escuros guardando lágrima nenhuma, e você partiu sem parar, e eu vi meu destino inteiro ali. Bem ali eu me lembrei daquela manhã, daquela música, do teu olhar semi-cerrado e do teu sorriso de canto de boca. Eu gritei teu nome, você virou a cabeça como se dançasse - e partiu.
Ai, meu coração.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
Da querência
_ Voltou a chover
_ Reparei
_ Chove todo dia agora
_ Eu sei, inclusive tomei um banho de chuva dia desses que
_ Você continua frequentando a casa dele
[Silêncio]
_ Nunca mais fui lá
_ Você não sabe nem mentir
_ Fui só na primeira chuva. Ainda tava muito quente. Mas nunca mais voltei
_ Que coisa feia. Te vi chegar hoje de manhã, toda rota
_ Não tava com ele
_ Ah, não? Era um clone dele te dando carona na bicicleta? Deus, a pessoa nem tem carteira de motorista
[Silêncio]
_ Tu tá me seguindo ou o quê?
_ Que porra de te seguindo! A GENTE TINHA COMBINADO!
_ Ah, verdade. Esqueci
_ Tu tá bêbada ainda?
_ Claro que não! Nem ando bebendo esses dias
_ Então tu tá indo atrás dele sóbria? Vou ter que te acorrentar no pé da minha cama agora? E quais são suas desculpas? Porque você disse que era o calor, né. Que tava muito quente daí ia beber e terminava embriagada na cama dele
_ Na verdade eu bebi ontem sim
_ QUAL O SEU PROBLEMA? O que você pode querer com aquele imbecil?
[Silêncio]
_ Não quero falar sobre isso
_ Mas ele é um imbecil!
_ E você acha que eu não sei?
_ Então?!
_ Eu só quero. E quando eu vejo já foi. Eu bebo, eu termino na casa dele, a gente fuma uns, ouve música, a gente transa a noite toda e eu só me dou conta de tudo isso no dia seguinte. Daí eu saio correndo da casa dele e só me resta o seu julgamento
_ Não tô te julgando. Só queria entender. Ele é um imbecil
_ Eu sei, mas é um imbecil que eu quero
[Silêncio]
_ Você sempre curtiu os imbecis
_ É porque você se casou com o único não-imbecil possível. Restou isso pra mim
_ Lembra daquele vocalista cabeludo que fazia música procê? Todo dia uma música nova. Daí você descobriu que ele fazia música pra todo mundo, que não era nada especial esse lance de vocês
_ Fiquei uns seis meses com ele. Só parei quando ele teve aquele bloqueio criativo
_ Que imbecil
_ E aquele advogado que era apaixonado por você e me comia pra te fazer ciúme, tu lembra?
_ Argh
_ Daí ele se apaixonou por mim e eu não quis mais
_ Ainda bem
_ E teve o da Rebeca
_ Não vamos falar dele. Nem da Rebeca
_ Será que eles morreram?
_ Menina, que coisa
_ Não, é só curiosidade mesmo. Não desejo a morte deles não, só queria saber
_ Sei
_ Foi uma coisa boa ele ter roubado aquele projeto de mim, sabe? Parece que deu uma chacoalhada e eu finalmente saí da zona de conforto
_ Zona de conforto...pára com isso! O imbecil pegou a maior conta da agência nas suas costas e ainda transou com sua amiga
_ A Rebeca nunca foi minha amiga. Você é minha amiga
_ E você é burra pra caralho. Sério, não sei como tu consegue
_ Todo imbecil transa bem
_ Ele tem guarani kaiowá no nome dele do facebook
_ Menina, mas o sexo oral...ele tem nariz grande, é difícil lidar com homens de nariz grande
_ Sei
[Silêncio]
_ Eu acho que seria bom ter um não-imbecil na minha vida, pra variar
_ Ah, você acha?
_ Eu não sei o que é. Todo imbecil me atrai em algum nível. E quando eu vejo eu já estou dentro daquilo e só saio quando sou expulsa justamente pelo imbecil
_ Resolve essa querência aí. Você merece mais que um guarani kaiowá
_ Quem sabe ele faz dread no cabelo? Não suporto homem branco de dread. E de repente ele aprende a tocar cajón, e vai atingir aquele nível de imbecilidade que não atrai ninguém
_ Quem sabe, né
_ Mas enquanto isso eu posso continuar aparecendo bêbada no apartamento dele?
_ Achei que você tava sem beber
_ Lidar com aquele imbecil estando sóbria é impossível
_ Quando você estiver bêbada, vai pra minha casa
_ Mas você não é imbecil. Nem tem nariz grande
_ A gente ouve música e fuma uns
_ Tu não fuma mais. Ou fuma?
[Silêncio]
_ Às vezes, quando eu consigo flagrar algum dos meus alunos com maconha, eu trago a prova do crime pra casa ao invés de jogar no vaso sanitário.
_ Não!
_ Sim. E eu entendo essas crianças, a maconha por aí anda muito boa
_ A maconha dele é orgânica
_ Nossa, que imbecil
_ Tu devia vir fumar uns com a gente qualquer dia
_ Quero não
_ Ele que planta, sabe?
_ Grandes coisas
[Silêncio]
_ Se eu for pra sua casa, quem vai transar comigo? Vai botar o marido pra jogo?
_ Tu nem curte meu marido. Aquele narizinho te deixa broxada
_ Tu vai me emprestar o teu vibrador?
_ Gata, tu precisa transar todas as noites da tua vida?
_ Só as que eu bebo. Falar nisso, vou desligar. Tô indo pruma festa
_ Te pego na casa dele amanhã
_ Não vou pra casa dele
_ Claro que vai. Aposto milhões de dólares
_ É só querência, como tu diz
_ Mas me diz uma coisa
_ Digo
_ Tu tá apaixonada por ele?
_ Claro que não. Ele é um imbecil
quarta-feira, 21 de outubro de 2015
Da estiagem
Cada noite quente é mais um convite pra rua, é mais um bar sujo, é mais um gole, é impossivel. Toda noite quente é um caminhar ébrio até a porta dele, eu nunca mais tinha feito isso, quantos meses já? Dois, três? Quem sabe, quem lembra, quem liga? Eu chego bêbada na porta dele, eu ligo, eu interfono, eu jogo pedra na janela. Eu subo alta, tonta, como sou tonta. Eu suo por todos os poros, eu pingo suor, eu pingo desejo, eu prometo não voltar nunca mais, eu tão dele. Eu molho a cama, eu disfarço minhas lágrimas, eu rio o meu gozo, eu vou embora sorrindo minha tristeza com os cabelos encharcados de solidão. Eu conto pra Mirela. "Não acredito, amiga, tu é burra". "Sou burra não", eu respondo, digo que a culpa é do calor, mas garanto que não volto lá, que foi só dessa vez, não conto pra ela que vou desde a primeira vez que bateu os 30° e que volto enquanto não chover. Não falo pra ela dos choros e das cervejas e dos bares sujos, "foi de ocasião, aconteceu, mas nunca mais, é a seca" e recolho a lágrima que teima em escorrer e olho pro céu pedindo clemência. Não tem uma nuvem. Mando deus se foder em silêncio e peço desculpas pra minha mãe por isso, como se a culpa fosse de alguém. Culpa de belo monte, ele dizia enquanto apertava o beck e eu procurava rotas de fuga, eu odiava aquele desgraçado. "Amanhã a gente faz a dança da chuva", eu digo idiotamente. "Ou um tinder", ela responde cheia de sabedoria. Desligo o telefone resignada e mando deus se foder de novo. No dia seguinte, acordo com um temporal bíblico alagando meu apartamento e ele convidando prum filminho e edredom. Rain, I don't mind.
terça-feira, 18 de agosto de 2015
por um fio
- Espera, deixa eu ver se eu entendi, você tá me pedindo pra ir embora porque tá com medo que eu te deixe, é isso?
- Isso!
- Percebe o quanto isso não faz o menor sentido?
- Nós dois nunca fizemos sentido. Mas, sabe os segundos de tremenda agonia que a gente vive quando criança, e um dente amolece, aí amarram nele um fio dental pra arrancar? Parece que eu tô vendo você olhar pra mim, segurando aquele fiozinho, pronto pra puxar a qualquer momento...
- Eu não acredito que você tá fazendo uma comparação dessas, num momento como esse. Eu não acredito que você acha que a dor da nossa separação vai ser equivalente a dor de arrancar um dente de leite. Vou fingir que nem ouvi...
- Não é isso! Eu tô falando da angustia que antecede o fim. Às vezes, é maior e mais dolorosa do que o próprio fim. Eu prefiro te arrancar de uma vez da minha vida a viver com medo. Viu como a gente não se entende? Além do mais, eu não gosto de quem eu sou quando estou com você.
- Então não seja! Apenas não seja!
- Não dá! Você desperta o pior que existe em mim. Você não entende?
- Não, eu não entendo. Não entendo você querer me culpar por suas próprias atitudes. Você me culpa por tudo, tudo!
- Bingo! É exatamente isso! Eu não quero ser uma pessoa que responsabiliza outra pelas minhas próprias atitudes. Não quero mais ser alguém que faz você se sentir tão culpado. Ou alguém que vasculha seu telefone enquanto você toma banho. Seus bolsos, sua carteira... Não quero mais viver duvidando. Sabe, às vezes, eu paro e fico me perguntando: qual será a sensação de ouvir 'hoje vou ter que trabalhar até mais tarde' e simplesmente acreditar? Simplesmente relaxar e responder 'tudo bem, amor', sem imaginar você comendo de todas as formas possíveis "a moça que faz você se lembrar o que é ser leve"?
- Mas... Eu não... Não acredito que você realmente mexeu no meu celu...
- Amor, você ainda me ama?
- Sim, mas...
- Então prova!
- Como?
- Puxa esse fio de uma vez!
- Eu... (...) Vou arrumar minhas coisas...
terça-feira, 26 de maio de 2015
profiteroles
eu estava deitada na cama comendo pizza adormecida, bebendo coca sem gás e vendo um programa muito ruim de comédia. sábado, eu completamente abandonada. só conseguia pensar em como a diversão dos meus amigos podia dar errado e eles podiam ir pra casa cedo e ficar assistindo ao mesmo programa que eu, mas sem a pizza e sem a coca. pensei em pedir uns profiteroles por telefone, mas não sei de nenhum lugar aqui nesse fim de mundo que entregue profiteroles. aliás, não sei de lugar nenhum que venda profiteroles. o que é uma pena, profiteroles for life.
fiquei lá na minha cama e por lá fui ficando. pensei um monte de besteira, pensei em gente morta, pensei em matar gente, cortar meu cabelo, levar o carro na oficina pra fazer aquela revisão dos vinte mil que eu devia ter feito quando ele tava nos trinta mil, enfim. pensei. e pensei nele também, aquele ser humano todo grande, de mãos imensas que pegam em mim toda de uma só vez. pensei na última vez que ele teve por aqui, me trouxe uns profiteroles e a gente fez sexo selvagem e lambuzado e ele com aquela língua imensa e as mãos imensas e ele todo imenso. ah. ele tinha sumido, tava com a namorada, pensei na namorada e só de pensar já me senti pior, então preferi não pensar. fingi dar uma gargalhada de uma piada deveras sem-graça, comédia de sábado à noite, você sabe bem como é.
ele me ligou. deixei o telefone tocar umas quatro, cinco vezes. achei que ele fosse desistir, mas ele não desistiu, ele devia ter desistido de mim já fazia uns cinco anos, mas ele continuava. se ele tivesse desistido eu também desistia. resolvi atender. ele falou umas sessenta palavras em média, das quais filtrei cinco que eram realmente importantes: quero teu cheiro, porra. saudade. eu respondi: ié, babe - que é tudo que ando dizendo por agora. ele riu e falou mais umas setenta palavras sem profundidade alguma, das quais filtrei apenas as últimas: tou indo pra tua casa. antes de desligar, falei: me traz uns profiteroles. ele riu e disse: te levo outra coisa, babe.
joga pizza fora, coca sem gás pelo ralo da pia, toma banho e de repente, não mais que de repente, o sábado sem-graça se enche de glamour. ele vem. borrifa perfume no travesseiro, senta e ri feito idiota, se olha no espelho: tu não é mais adolescente, porra. controla o batimento cardíaco, não dê tão na cara, ele vai perceber. que perceba, foda-se. calcinha sexy rasgada, oh dog, a vida é ingrata e cruel. calcinha branca de algodão, ele gosta, ele gosta de mim toda e de tudo em mim. e o carro pára na frente da casa e eu abro a porta de calcinha e blusa de alcinha e ele vem me comendo toda e a gente faz sexo no corredor.
sexo no corredor for life. esqueçam os profiteroles.
(texto bem antigo, de 2007, recuperado de um blog também antigo. reaproveitamento é ecologicamente correto, né)
quinta-feira, 19 de março de 2015
Roubo
- Não diga isso, meu bem...
- ...
- Te chamei de 'meu bem' sem perguntar se você tem um. Mas se tiver um, e ele te tiver, dessa forma, não me importaria em roubar pela primeira vez.
- 'A ocasião faz o ladrão'.
- ...
- Te chamei de 'meu bem' sem perguntar se você tem um. Mas se tiver um, e ele te tiver, dessa forma, não me importaria em roubar pela primeira vez.
- 'A ocasião faz o ladrão'.
segunda-feira, 9 de março de 2015
Urgência
Ela era feliz sim. De uma felicidade urgente, genuína e selvagem. Ela mergulhava nas madrugadas sorrindo enquanto era carregada pelo braço, ela bebia a saliva com a sede de deserto, ela beijava os olhos e os cabelos e os nós das mãos. Ela machucava os joelhos no sexo sujo do banheiro do bar, ela dormia durante toda a tarde dos domingos com a mão pousada no peito, ela sonhava com o céu aos seus pés. Ela corria pelo campo verde que era a vida a dois, corria e corria, não podia parar de correr. E de tanto correr ela chegou à beira do abismo, e deu as costas pro abismo, e deu as costas pros avisos, e deu um passo maior que a perna e caiu. E caiu e rolou pelas pedras, machucando a boca que bebia a saliva, que sorria, que beijava os olhos e os cabelos e os nós das mãos. Machucou os joelhos que machucava no sexo sujo do banheiro do bar, machucou as mãos que descansavam no peito nas tardes de domingo. Machucou o coração selvagem. Ela viu o céu aos seus pés. E caiu e caiu, e achou que nunca pararia de cair, até que uma hora parou. Lá do fundo do abismo ela viu um filete de água correndo, e seguiu a água até o ponto onde havia uma forte correnteza, onde havia um rio que corria, e ela seguiu o rio, seguiu a correnteza, e o rio foi dar no mar, e ela nadou e nadou até chegar à praia. Chegando na praia ela se deitou na areia e fitou o sol, e o sal foi fechando as feridas, as feridas da boca, da mão, dos joelhos, do coração. E ela se jogou de volta ao mar, e sentiu cada onda bater, e sentiu a urgência voltar, e a vertigem crescer. E sentiu pressa de voltar a amar. E sorriu pros banhistas, tão genuína como sempre fora, e de tempos em tempos ela voltava a mergulhar nas madrugadas enquanto era carregada, ela voltava a beber a saliva com a sede de deserto, ela voltava a machucar os joelhos no sexo sujo do bar, da praça, do chão do quarto. Ela voltava a correr pelo campo verde, ela voltava a se deparar com o abismo, ela voltava a dar um passo maior que a perna. Ela voltava a ver o céu aos seus pés. Mas ela, selvagem, seguia. E achava outro rio e nadava em outra correnteza até se curar. E seguia, pois tudo nela urgia.
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
E se?
"E se?", eu me perguntava. E se a gente tivesse seguido adiante naquela bebedeira e se a gente tivesse dormido junto aquela noite e se a gente tivesse vivido essa parcela de vida que parecia tão óbvia e tão certa? E se a gente tivesse se lançado naquele abismo que era meu coração ainda se curando de tantas e tantas feridas? E se seu corpo me trouxesse as respostas pra todas as perguntas que teus olhos me faziam? E se teu corpo me comesse como me comiam teus olhos? E se a promessa dessa noite ensopada de suor e desejo se concretizasse e a gente enfim gritasse que era isso que a gente queria e que queria há bastante tempo e era sim inevitável? E se a gente cruzasse a fronteira só pra, dali à frente, perceber o passo maior que as pernas e querer voltar? E se a gente nunca voltasse? E se eu te abraçasse com as minhas pernas e a gente gozasse junto apenas por aquela noite quente naquele lugar que, ali, parecia ser só da gente? E se? Eu me cansei de esperar pela resposta. Eu me ensopei de outras noites, eu comi outros olhos, eu abracei outros corpos. Eu cruzei todas as fronteiras, mesmo as que eu nunca devia ter cruzado. Eu te vi desfilar com outras moças e eu desfilei meus moços e ainda assim seus olhos me comiam e me inquiriram e me diziam todas as coisas impossíveis de ser ditas. E eu dancei sozinha noites a fio, o cigarro por companhia e a solução pra todas as dúvidas descansando no meio das tuas pernas. E se?
terça-feira, 30 de setembro de 2014
A morte do menino amor
Aquele menino amor nascera na véspera do ano novo. Nascera feliz, saudável, pois já no início era dividido igualmente em duas partes, o que garantiria a ele bons anos de vida. Se tivesse nascido dividido em partes desiguais, mais cedo ou mais tarde uma das partes do amor pesaria demais e exigiria em demasia da parte menor, o que nunca é justo. Nunca é justo com o amor e munca é justo com quem ama.
Pois esse menino amor nasceu e cresceu bonito e saudável, nas duas partes jovens e saudáveis. O menino amor era cheio de vida. O menino amor viajou, morou junto, encarou o tempo ruim e celebrou o tempo bom. O menino amor foi feliz, certo de uma vida longa e plena.
Até que veio...a vida. E o menino amor, agora já crescido, se viu também partido. Continuava dividido em partes igualmente iguais, porém distantes uma da outra. Uma parte lá, outra parte aqui. Mas o amor não se deu por vencido e resistiu. E escreveu cartas, e varou noites em ligações intermináveis, e gastou todas as milhas acumuladas com o cartão de crédito. O amor tentou. Mas a vida se esforçou em continuar, e as ligações cessaram aos poucos, as cartas demoraram mais pra chegar, as milhas findaram e o bolso não podia comportar. E o silêncio veio chegando sorrateiramente, ocupando o lugar do riso, e o riso se viu em outros olhos, e outras bocas se beijaram numa noite fria, sem dor pra ninguém porque aquele amor não estava mais lá.
Não sem tentar, e cheio de dúvidas, o amor morreu.
Morreu ainda dividido em partes iguais, o que era de uma tristeza infinita. Amores morrem todos os dias, porque não são de verdade, ou não são do mesmo tamanho, ou foram traídos pelo melhor amigo - o pior inimigo. Mas ninguém lidava bem com essa morte assim. Era um amor jovem, verdadeiro e igual.
Que, infelizmente, morreu de fuso horário.
terça-feira, 16 de setembro de 2014
A volta do boêmio
Engraçado retornar às linhas & letras e deixar um pouco de lado os números e as observações das mesas de pôquer. E já se vão mais de dois anos sem aparecer nesta Confraria. Sim, voltei porque fui. E fui porque já não via sinceridade nas minhas ideias de amor. Teve uma hora que me dei conta que escrevia, era lido e elogiado por falar de algo que ainda não tinha vivido de fato. Sacanagens, seduções, entre outros, ah... isso eu conhecia bem. Mas de amor, era (e talvez ainda seja) um completo retardado.
Eis que vivi. E como... Intensos, fulminantes, contraditórios. Meus amigos, garanto-lhes que esta puerra que tanto se fala sem o menor fundamento é o narcótico mais hardcore que existe e dele provei até ter overdose. Amei pra caralho. Poutaquepariu! E olha que nem acho que sou dos que mais se entrega. Um erro, claro. Amor é pra isso, é pra se lambuzar e deixar secar sem limpar, sem frescuras.
Ele é descontrolado, e me conheci um sujeito controlador. Daí as cagadas que aprontei, pois aquilo chamado amor é pior que touro brabo, não tem quem dome essa desgraça. Você fica sem chão (e me perdoem os lugares comuns, mas estou desenferrujando ainda), mas quando tu se vê nessa situação, ao invés de procurar algum lugar pra segurar, a vontade que dá é de se mergulhar mais fundo, de testa, só pra ver onde dá.
Voltando ao retorno ao blog, devo confessar que agora no meio do texto, minha cabeça fervilha de sensações que vivi e quero passar, mas ao mesmo tempo me dá um medo danado de não conseguir terminar esse texto de uma forma digna. Perdi um pouco dessa dignidade de escritor. Dessa moral.
Enfim, rumbora parar por aqui hoje ou não termino isso aqui muito bem. Melhor voltar de leve, sem um texto com a obrigação de ser realmente bom. Só um texto simples. Até meio ruim. Não vou divulgar, nem fazer o menor alarde sobre esta crônica. Quem sabe a próxima vingue. Penso em fazer uma carta aberta. Uma prova pro meu amor atual. Ou não. Ou só conte um pouco das minhas preserpadas, pois elas continuam.
Até mais.
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
A sorveteria
“Boa escolha a sua” disse a ele com o
sorriso simpático de quem conhece a freguesia. – É! Dificilmente compro outros sabores,
respondeu. “Faz bem, o açaí tem ferro e dá energia” completou como se
conhecesse sua rotina e da sua necessidade de complexo B. – Está aqui seu
troco. – Obrigado, posso voltar outra hora para conversarmos mais sobre tabela
nutricional dos picolés? – Claro, será bem vindo! Respondeu com espanto e um ar
de riso.
Ele passou meses pensando naquele curto
diálogo despretensioso e imaginando a rotina daquela moça linda de olhar
materno. O que ela pensa ao acordar? De
quem lembra ao deitar? Qual sua comida preferida? Prefere rock ou sertanejo?
Mas a vida tratou de esfriar as perguntas e colocar
as tarefas burocráticas na pauta do dia. De segunda a sexta, dez horas de
trabalho contínuo, sábado a cerveja com os amigos e o domingo de futebol na TV.
A vida foi passando rapidamente rumo ao dia de mudar de cidade.
Com uma oferta de trabalho, foi para o
interior de Minas Gerais na esperança de que entre um pão de queijo e uma
cachaça a vida adoçasse e a paz chegasse. Com tanta dedicação ao trabalho,
prosperou e tornou-se um importante empresário da região. Comprou fazendas
quilométricas e uma fábrica de fazer queijos.
Certa vez, nas suas andanças pela
fabrica caiu no chão desmaiado. – “com certeza é estresse” disse uma das
funcionárias acostumada com a rotina do chefe. Era anemia! O baixo índice de
ferro no sangue era fruto de várias horas a mais de trabalho que lhe renderam
uma baixíssima imunidade.
Passou algumas semanas internado e
quando teve alta comprou imediatamente uma passagem para sua terra natal com um
desejo em mente.
–
“Moça, oito picolés de açaí, e um beijo, por favor!”.
~~ Fim ~~
quarta-feira, 9 de julho de 2014
Sonhar...
…e acordar sem você, amor, é como não beber água depois de
escovar os dentes. Como esperar aquele ônibus há horas e perceber que ele não
vai parar porque ta lotado. É como precisar daquele abraço apertado e só ganhar
um aperto de mão e dois beijinhos no rosto (um em cada lado). É como dirigir um
carro de marchas na contra mão. É como tentar andar de costas e de olhos
fechados na tua direção.
Não te ter ao lado ao despertar, entorpecida de você, é como
ouvir uma música bonita só com um lado do fone de ouvido. Como andar no sol
quente sem óculos, desprotegido. É como esperar o sinal vermelho abrir. É como
sujar os sapatos recém engraxados. É como se preparar para um dia de sol e ver
que o tempo ta nublado.
É que não ter seus olhinhos pequenos e brilhantes, logo
depois de me deslumbrar contigo, me agonia. Eu não quero te dizer o que guardo
aqui dentro. Não quero te contar que você faz essa falta que machuca,
estraçalha e bagunça mais ainda a minha sutil insanidade. Não quero te contar a
vontade que tenho de mexer novamente em teus cachos. De enrolar meus dedos por
entre eles e adormecer contigo deitado de cabeça para baixo.
Mas deixa eu voltar a dormir agora, amor. Porque amanhã vai
ser difícil admitir que hoje você me encheu de saudades. Vai ser árduo perceber
que nenhum tempo é bom o bastante ao teu lado.
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