sábado, 2 de fevereiro de 2019

Sonho de padaria

__ Mas o que diabos tá acontecendo aqui?

Ela parou antes de atravessar a rua. Do outro lado da pista havia uma pequena comoção na frente da padaria. Por um momento ela achou que algo tivesse acontecido com o Seu Borges, o dono da padaria, que ela conhecia há anos. Até que o viu sair do estabelecimento e tentar, em vão, afastar as pessoas dali.

__ E o que foi, Borginho?
__ Tem um cara aí chorando, Dalila, e as pessoas tão filmando pra postar na internet.
__ Uai.
__ Pois é, não sei pra quê também.

O cara estava sentando numa cadeira alta em frente ao balcão, um sonho recheado com creme intocado à sua frente, chorando copiosamente. Ela sentou na cadeira logo ao lado e olhou pro rapaz com um sincero e inesperado interesse.

__ Borginho, traz um café pro amigo aqui.

Seu Borges trouxe um copo americano com café transbordando e balbuciou “vou deixar vocês a sós”, ao que ela riu, já que havia ao menos 5 adolescentes do lado de fora filmando toda a cena.

__ Ei, tá tudo bem? Você tá precisando de alguma coisa?
__ Não, eu...tá tudo bem.

Só então ele se deu conta da presença dela. Logo depois se deu conta da presença de todas as outras pessoas. Assoou sem jeito o nariz e voltou a fitar o sonho.

__ Esse sonho é muito bom.
__ Acredito que sim.
__ O café também é bom pra cacete.
__ Uhum.
__ E aquelas meninas estão fazendo stories sobre você agora.
__ Ah. É. Não é legal, isso.
__ Não.
__ Vou pedir essas coisas pra viagem.
__ Mas você tá bem mesmo?
__ Olha, não, mas chorar no balcão da padaria e virar meme de internet não vai ajudar então é melhor eu fazer alguma coisa.
__ Ok.
__ Desculpa. Hoje deve ser o pior dia da minha vida, mas é claro que a culpa não é sua, você na verdade está sendo bastante gentil.
__ Tudo bem. Você quer conversar sobre o seu dia tão ruim?
__ Cara. Talvez eu precisasse. Mas acho melhor não.
__ Tudo bem também. Mas bebe pelo menos o café.
__ Vou beber. Obrigado.

Ele deixou uma nota de 2 reais sobre o balcão e saiu apressadamente da padaria, as adolescentes rindo enquanto finalizavam seus stories no instagram. Ela deu de ombros, puxou pra si o sonho que ele não comeu e se arrependeu na primeira mordida.

__ Borginho, me vê outro sonho que esse aqui tá salgado de lágrima.

    ***
__ Ah, que bom que você ainda tá aqui.
__ Sim, tentei comer seu sonho mas não tava bom.

Ele riu.

__ Eu tava chegando na estação quando me dei conta que não paguei pelo sonho.
__ Imagina dever um sonho.
__ Enfim. Queria só te agradecer pelo cuidado. Obrigado, mesmo.
__ Por nada.
__ Meu nome é Adriano.
__ Oi, eu sou a Dalila.
__ Ok. Obrigado, mais uma vez.

Ele já estava na calçada quando olhou pra trás. Os dois estavam rindo. O Seu Borges também.

__ Continuo devendo um sonho.
__ Eu já paguei.
__ Então eu devo um sonho pra você.
__ Me paga amanhã. Passa aqui por volta das 8.
__ Certo.
__ Certo.

Ela pediu outro café, e foi até a porta da padaria pra fumar. Seu Borges parou do lado dela, preocupado.

__ Essa história de sonho aí, não sei não, viu.
__ É só um café e um sonho.
__ Você viu o tamanho da aliança que ele usa?
__ Ah bom, então se eu comer um sonho na padaria com um cara é por que eu quero casar com ele?
__ Eu sei que você não quer casar. É só pra você ficar ligada.
__ Tá tudo bem, Borginho. Sou uma mocinha esperta.

     ***
Ele não passou lá no dia seguinte, nem no próximo, nem em dia nenhum das duas semanas que se seguiram. Nos primeiros dias ela sentiu um ligeiro incômodo, mas logo a vida seguiu e ela esqueceu. Até que, numa sexta-feira qualquer, quase um mês depois do incidente da padaria, eles se esbarraram na frente de um bar.

__ Dalila?

Ela o abraçou, um pouco mais efusiva do que esperava, e ficou surpresa consigo mesma. Mas manteve o abraço, que ele retribuiu sem estranhar.

__ Falando sério, que bom que você está vivo.
__ Desculpa não ter aparecido, fiquei super atolado com milhares de coisas. E não tinha seu telefone pra avisar que não ia dar pra ir.
__ Não, que isso, sem problema. Como você está?
__ Continuo miserável, mas adotei a atitude positiva de encher a cara e não falar sobre isso.
__ Meu Deus, você faz péssimas escolhas.
__ Verdade. Quer uma cerveja?

Eles encontraram uma mesa na parte de trás do bar e conversaram sobre amenidades por um tempo. Ela observou que a aliança continuava reluzente na mão esquerda dele. Ele observou que ela não tinha aliança. Ela recebeu mensagens, que ignorou. Ele não recebeu mensagens, mas foi abordado com muita empolgação por dois outros caras.

__ O que foi isso?
__ Ah, esses caras são da minha cidade. Eu moro em São Paulo há dez anos, mas sou de São Roque. De vez em quando encontro conhecidos por aí.
__ Entendi.
__ E você? É daqui?
__ Sim, sim. Nascida e criada.
__ E você faz o quê?
__ Eu trabalho pra uma editora. Na vida real, né. De noite eu combato o crime com uma bandinha. Toco baixo.
__ E o que a sua bandinha toca?
__ A gente toca músicas imortalizadas por grandes cantoras. Sabe? Madonna, Aretha, Diana, Beyoncé, Solange do Aviões.
__ Ok.
__ Mas a gente se veste de Elvis. A banda toda, só de meninas, todas vestidas de Elvis, cantando músicas famosas em vozes femininas.
__ Ok, ok. Interessante. Gosto.
__ E você?
__ Eu sou desenvolvedor de software. Estamos criando um app de delivery de gerenciamento de festas que saem do controle.
__ Isso é sério?
__ Você não faz idéia do quanto o mercado de festas que saem do controle é inexplorado. No nosso app você vai poder pedir bebida, comida, contratar uma equipe que faz pequenos consertos durante ou depois da festa, segurança, tudo que for preciso pra festa continuar descontrolada mas com um pouco de sabedoria.
__ Que ótimo!
__ Você vai ser minha primeira cliente.
__ Não vejo a hora de dar uma festa na mansão dos meus pais enquanto eles viajam só pra poder chamar a equipe que vai consertar o ovo fabergé que o idiota do meu namorado quebrou.

Ele deu um longo gole na cerveja.

__ Seu namorado vem te encontrar aqui?
__ Não, eu não tenho namorado. Nem pais que moram numa mansão com um ovo fabergé.

Ela deu um longo gole na cerveja.

__ E a sua esposa, que horas vem?
__ Provavelmente nunca – ele tentou rir mas soou como um latido.
__ Como assim? MEU DEUS, ELA MORREU.
__ Não! Não. Nós estamos nos divorciando.
__ Ah. Ufa.
__ Que alívio, né.
__ Olha, desculpa, mas é sim. Imagina a minha indelicadeza.
__ Enfim. Era por isso que eu estava chorando na padaria aquele dia. Eu tinha acabado de voltar do cartório.
__ Ah. Faz sentido. Desculpa. Por esse diálogo horrível, pelo que aconteceu na padaria, pelo seu divórcio. Sinto muito.
__ Tudo bem.
__ E o que houve? Quer dizer, a não ser que você não queira falar sobre isso.
__ Não...acho que não tem problema. Acho que no fim a gente foi deixando de ser casal, sabe? Não acho que tenha acontecido nada grave com a gente não. A gente se amava e se respeitava muito, a gente era feliz, a gente tentava fazer dar certo. Mas acho que ela foi me vendo mais como amigo que como amante com o passar dos anos.
__ Vocês ficaram quanto tempo juntos?
__ 3 anos de namoro e 11 de casamento.
__ E vocês se separaram numa boa?
__ Então...ela é o amor da minha vida. Quando ela disse que queria se separar eu talvez tenha insistido um pouco pra tentarmos mais. Fizemos terapia, viajamos, eu fiz um tempo de home office, o que obviamente só atrapalhou. Até que ela disse que não tinha como mesmo. Fiz uma mala e fiquei uns dias na casa de um amigo, mas achei que ela talvez só precisasse de um tempo pra si, até que os papéis do divórcio chegaram. Passei as duas últimas semanas procurando apartamento e tal.
__ Então foi rápido.
__ A gente passou o último ano agonizando. Parecia uma eternidade. Mas desde que ela me disse que era definitivo até o dia de hoje eu nem sei dizer o quanto passou, porque parece que só durou um respiro.
__ Olha, sinto muito mesmo.
__ Ah, que isso, tá tudo bem. Já me acostumei à idéia de viver sem ela.
__ Já?
__ Não, na verdade não. Mas o que se há de fazer, né mesmo? Eu tô bebendo ininterruptamente há três dias.
__ Bom, retiro o que disse, suas escolhas parecem razoáveis diante da situação.
__ Agora é a sua vez de contar sua grande tragédia.
__ Ah...é...bom, não sei se tem tragédia não. Minha família é meio normal, meus amigos são ótimos, eu amo meu trabalho e minha banda, tô solteira há um ano, tenho 5 gatos e é isso.
__ Ninguém partiu seu coração?
__ Sim, sim. Um músico. Foi horrível, mas daí pra nunca mais, né? Pra mim basta uma vez. Especialmente depois de um músico.
__ Músicos são dureza mesmo.
__ Só os homens.

Eles sorriram. Beberam mais, falaram mais, sorriram mais, ele tocou o braço dela repetidas vezes, ela afastou o cabelo dele dos olhos repetidas vezes. Ela se sentiu imprudente, ele se sentiu aliviado. Saíram do bar já era quase de manhã, caminharam juntos até a casa dela, falando alto na rua, de braço dado, com uma intimidade criada naquelas horinhas de álcool e fumaça de cigarro e música alta. Ele tinha um senso de humor incrível e ela era afiada, eles conversaram sobre amor, medo, morte, impostos e Plutão, ela mostrou fotos dos gatos, ele disse que sua banda preferida era Charlie Brown Jr só pra ela rir, ela cantou e dançou Elvis na esquina do apartamento dela e por fim eles se abraçaram longamente na despedida.

__ Você não vai me chamar pra subir, né. Que nem nos filmes.
__ Não.
__ Tudo bem.
__ Você ainda usa a aliança.
__ Eu sei. É hábito.
__ Negação.
__ Talvez. Capaz.
__ Mas foi uma noite ótima.
__ Foi sim. E eu continuo te devendo um sonho.
__ Olha, acho que você talvez precise mais do sonho que eu.
__ Talvez. Capaz. Mas acho que não. Hoje você me deu outra coisa.
__ Foi? Mas a gente nem subiu.
__ Foi. Você me deu fôlego.

Ele a beijou na bochecha, ela fechou os olhos e prendeu a respiração, quase esperando o desvio, quando deu por si ele já tinha dobrado a esquina.

__ Eita nós.

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