sexta-feira, 10 de maio de 2019

Você tem 02 novas mensagens

Mensagem de voz (1:34)

Eu fiquei na dúvida se te escrevia um e-mail, se passava na sua casa, se procurava uma música pra mandar indireta no twitter, daí achei mais fácil e prático mandar um áudio, até porque o que eu tenho pra dizer é bem simples.
Num ponto você tá certa e eu não tiro tua razão, sabe? Eu não vou mentir pra você que eu não amo mais a minha ex-mulher, nem vou dizer que eu já processei tudo que aconteceu e agora é só brisa. Tô no caminho. Nem quero que você me pegue pela mão também e me guie pela estrada de tijolinhos amarelos porque não é tua função na tua vida e eu nem sei se você quer uma função na minha.
O negócio é que te encontrar foi uma coisa louca e incrível e eu não paro de pensar nisso, e quando eu me pego pensando nisso eu sinto aquele negócio no estômago. E tudo é urgente. Quando eu vi teu e-mail eu abri correndo pensando que era um convite pra uma noite de bebedeira e suor, daí fuén. Fiquei uns dias trabalhando as ideias porque eu não quero te machucar, mas eu não posso, não devo, não vou dizer pra você que vai dar tudo certo e ninguém vai se ferir no processo. Até porque, até onde me consta, eu posso me apaixonar perdidamente por você em dois meses e aquele músico lá voltar da turnê pelo coração das outras e querer tocar só contigo, e aí quem voa sou eu. Entende meu ponto? Nessa vida ninguém tá seguro. A não ser que você seja uma cigana que leu meu destino na palma da minha mão.
O que eu sei, a única coisa que eu posso te garantir, é que nesse momento eu quero você. Eu quero você demais. Eu quero você na minha cama, na sua, no meio da rua, eu quero você do jeito que você vier – se for sem medo. Não quero que você sinta medo de mim. Queria que você sentisse a mesma fome que eu sinto do teu gosto. A única coisa que eu posso te pedir é que a gente siga e veja onde dá. Mas é claro que se você não se sentir segura eu vou respeitar, e entender, e acostumar meu corpo à tua lembrança.

Mas ai.

Mensagem de voz (0:10)

Ah, sim, gostei muito do repertório que as meninas mandaram, acho que a festa de lançamento vai ser ótima e eu queria muito te ver e comer teu cabelo e beber teu suor. É isso. Boa noite.


***

Tô trabalhando nessa historinha há algum tempo. Aqui tem a primeira parte. A segunda parte você pode ler aqui.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Desjejum

Quando você me abraçou, o seu cabelo tinha cheiro de cachaça e maconha. Encostei meu rosto ali, sentindo os fios ralinhos e percebi que você estava começando a ficar careca. Deitada na cama, me derreti nos seus braços. Você murmurou alguma coisa, falou que precisava acordar cedo, tinha um compromisso. E eu entendi que daquela vez não iriamos tomar café da manhã juntos. Tentei disfarçar minha decepção, porque eu realmente gostava da forma como você passava café e explicava sobre a importância da temperatura da água, aquele tipo de coisa que só quem trabalhou como barista entende. “Mas eu aprendi com a minha mãe”, você sempre explicava, não importava quantas vezes fizesse o café. Talvez porque suas visitas eram tão distantes que você esquecia que já tinha me contado aquela história. Não, dessa vez você levantaria assim que o despertador tocasse, me daria um beijo nas costas e iria colocar a roupa. Meio dormindo, eu iria perguntar se você gostaria de tomar um banho e, como sempre, você diria que não. “Vou tomar em casa mesmo”. E com um beijo desajeitado iriamos nos despedir na porta de casa. Eu voltaria a dormir e quando acordasse, algumas horas depois, não saberia se a sua visita no meio da noite tinha sido um sonho ou realidade.

***

A Veriana Ribeiro voltando em grande estilo pra Confraria

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Oie

Estou desde domingo à noite tamborilando esse e-mail pra você. Não tem cigarro, não tem uísque, não tem comédia romântica na tevê que me ajude a dizer o que eu quero dizer.
Talvez eu queira dizer que eu pensei em você todos os dias depois daquela noite no bar, daquele abraço na porta da minha casa. Pensei no seu cabelo caindo no olho, no seu nariz perfeito, na sua aliança dourada. Pensei se sua aliança tinha o nome da sua ex gravado. Pensei no seu casamento acabado e em você acabado. Pensei no que dissemos e no que não dissemos. Pensei que eu queria te ver de novo, naquele mesmo dia, quem sabe num parque, quem sabe na padaria onde eu comi aquele sonho coberto das suas lágrimas. Pensei, pensei e pensei. Pensei no que eu queria e no que eu não podia.
Quantos dias se passaram? Eu esqueci de contar porque eu eventualmente pensei que não devia pensar, então voltei pra mim, pros meus gatos, pra minha banda, pros meus dias bestas. Recebi uma ou outra ligação, uma atendi, outra recusei. Revisei um livro doído de tão ruim, vi um documentário sobre uma menina desaparecida, vi clipes de músicas oitentistas no youtube, vi minhas amigas e não disse a elas nada sobre você, porque não queria nem o estímulo nem a censura, você era um segredo meu, um desejo meu que eu não poderia partilhar com ninguém porque eu não poderia partilhar com você.
Duas semanas, eu acho, foi o tempo que demorou pra você me procurar, porque não trocamos telefone naquele dia. Posso dizer que foi conscientemente, só pra mentir, só pra fingir que eu não queria ter subido com você e visto como você fica na minha cama. Posso dizer que foi conscientemente pra quem um dia me perguntar – “não tinha como trocar telefone, foi o melhor a fazer”.  Mas não foi conscientemente porque eu estava ébria de uísque e de um sentimento novo, um pulsar diferente no meu peito, uma urgência na garganta de dizer “vem”. A mesma urgência que me fez procurar suas redes sociais revirada na cama, a mesma urgência que me fez não seguir, não adicionar.
Duas semanas até eu te ver na entrada da padaria, numa sexta-feira ensolarada, um café na mão e um sorriso que ainda agora eu não consigo decifrar. “Não tenho seu telefone, lembrei que você tinha combinado de me encontrar aqui no dia seguinte às 8h, então achei que você costumava vir aqui sempre. Não sou stalker, eu juro, é porque vamos lançar nosso app daqui dois meses e queria saber se sua banda não quer tocar na festa”. “Que ótimo, mas você nem conhece minha banda”. “Verdade! Me apresenta?”. Sentamos no balcão, te mostrei uns vídeos, te mandei o link pra baixar as músicas, eu não pensei e devia ter pensado. “Vou trabalhar agora”. “Podemos nos encontrar no almoço pra fechar então o show?”. “Claro, me passa seu telefone, daí você para de me perseguir”.
Do almoço pro bar no fim da tarde pra nós dois na minha cama eu não lembro como foi. Eu lembro de você na minha cama, do seu cabelo suado caindo sobre os seus olhos, do seu nariz perfeito roçando no meu rosto, das suas unhas penetrando as minhas costas. Me lembro da sua figura na janela recortada contra a noite enquanto fumava um cigarro e eu te chamava de volta, e você voltou pesaroso, e eu perguntei o que houve, e você disse que há meses não se sentia tão vivo. E talvez por isso você tenha me agradecido, ao que eu me senti uma acompanhante de luxo, prestando um serviço pra um divorciado, um momento de esquecer a mulher que tanto amava e não o queria mais. Você me olhou com olhos ternos, como se sentisse o que eu senti, e me disse que estava genuinamente feliz.
A culpa deu lugar a uma estranha euforia, e de repente eu soube que você ficaria naquela cama até a vida nos denunciar. Sexta à noite. Sábado de manhã, de tarde, de noite. Domingo de manhã, de tarde, de noitinha. Você recebeu uma ligação do sócio e precisou correr, e eu não dormi nada, e já se vão dois dias desde que você me beijou na boca e saiu apressado, e acordei hoje pensando que eu devia escrever pra você pra dizer.
Pra dizer que eu tenho medo.
Tenho medo porque não sei como manejar uma relação – de qualquer natureza – com alguém emocionalmente indisponível. E não é que eu queira que você me ame hoje, eu certamente quero que você me deseje hoje, e talvez fosse simples passar a noite inteira com você até meu corpo desistir e eu dormir pesadamente por horas. Talvez eu não me apaixone por alguém que já ama uma terceira pessoa que não está envolvida na equação. Talvez.
Mas talvez eu queira romance, um namoro de mãos dadas, talvez eu queira um domingo no parque, um cinema na última sessão pra gente não ver o filme, eu não sei. Nesse momento tudo sobre você em mim está suspenso e eu não sei se apenas quero o que você tem pra me oferecer ou se estou entrando de cabeça num caminho onde espero o que você não pode me dar.
Que louca.
Talvez eu tenha medo porque você é a criatura mais apaixonável que já cruzou minha existência, e eu sou de arroubos – logo se vê.
Talvez eu tenha que esclarecer que não me apaixonei por você. Pode ser que nunca, inclusive, porque sou de arroubos mas também de um zelo por vezes excessivo. Mas eu tenho que esclarecer que, no momento, não sei lidar com o que eu quero de você.
Acho que podemos manter uma respeitável relação profissional, por ora, já que você me contratou no almoço e me comeu no jantar, e eu já mandei a notícia pras meninas da banda e elas estão super empolgadas porque seu app no fundo é incrível e elas montaram um repertório bem wild party pra combinar com o que vamos lançar daqui dois meses.
Acho que podemos conversar pelo whatsapp, pra eu não ver seu cabelo caindo no olho, pra eu não lembrar do seu nariz perfeito, pra eu não pensar em você dentro de mim.
Acho que podemos somente o que não queremos.
Beijos,
Lila.

****

A primeira parte dessa história você pode ler aqui

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Sonho de padaria

__ Mas o que diabos tá acontecendo aqui?

Ela parou antes de atravessar a rua. Do outro lado da pista havia uma pequena comoção na frente da padaria. Por um momento ela achou que algo tivesse acontecido com o Seu Borges, o dono da padaria, que ela conhecia há anos. Até que o viu sair do estabelecimento e tentar, em vão, afastar as pessoas dali.

__ E o que foi, Borginho?
__ Tem um cara aí chorando, Dalila, e as pessoas tão filmando pra postar na internet.
__ Uai.
__ Pois é, não sei pra quê também.

O cara estava sentando numa cadeira alta em frente ao balcão, um sonho recheado com creme intocado à sua frente, chorando copiosamente. Ela sentou na cadeira logo ao lado e olhou pro rapaz com um sincero e inesperado interesse.

__ Borginho, traz um café pro amigo aqui.

Seu Borges trouxe um copo americano com café transbordando e balbuciou “vou deixar vocês a sós”, ao que ela riu, já que havia ao menos 5 adolescentes do lado de fora filmando toda a cena.

__ Ei, tá tudo bem? Você tá precisando de alguma coisa?
__ Não, eu...tá tudo bem.

Só então ele se deu conta da presença dela. Logo depois se deu conta da presença de todas as outras pessoas. Assoou sem jeito o nariz e voltou a fitar o sonho.

__ Esse sonho é muito bom.
__ Acredito que sim.
__ O café também é bom pra cacete.
__ Uhum.
__ E aquelas meninas estão fazendo stories sobre você agora.
__ Ah. É. Não é legal, isso.
__ Não.
__ Vou pedir essas coisas pra viagem.
__ Mas você tá bem mesmo?
__ Olha, não, mas chorar no balcão da padaria e virar meme de internet não vai ajudar então é melhor eu fazer alguma coisa.
__ Ok.
__ Desculpa. Hoje deve ser o pior dia da minha vida, mas é claro que a culpa não é sua, você na verdade está sendo bastante gentil.
__ Tudo bem. Você quer conversar sobre o seu dia tão ruim?
__ Cara. Talvez eu precisasse. Mas acho melhor não.
__ Tudo bem também. Mas bebe pelo menos o café.
__ Vou beber. Obrigado.

Ele deixou uma nota de 2 reais sobre o balcão e saiu apressadamente da padaria, as adolescentes rindo enquanto finalizavam seus stories no instagram. Ela deu de ombros, puxou pra si o sonho que ele não comeu e se arrependeu na primeira mordida.

__ Borginho, me vê outro sonho que esse aqui tá salgado de lágrima.

    ***
__ Ah, que bom que você ainda tá aqui.
__ Sim, tentei comer seu sonho mas não tava bom.

Ele riu.

__ Eu tava chegando na estação quando me dei conta que não paguei pelo sonho.
__ Imagina dever um sonho.
__ Enfim. Queria só te agradecer pelo cuidado. Obrigado, mesmo.
__ Por nada.
__ Meu nome é Adriano.
__ Oi, eu sou a Dalila.
__ Ok. Obrigado, mais uma vez.

Ele já estava na calçada quando olhou pra trás. Os dois estavam rindo. O Seu Borges também.

__ Continuo devendo um sonho.
__ Eu já paguei.
__ Então eu devo um sonho pra você.
__ Me paga amanhã. Passa aqui por volta das 8.
__ Certo.
__ Certo.

Ela pediu outro café, e foi até a porta da padaria pra fumar. Seu Borges parou do lado dela, preocupado.

__ Essa história de sonho aí, não sei não, viu.
__ É só um café e um sonho.
__ Você viu o tamanho da aliança que ele usa?
__ Ah bom, então se eu comer um sonho na padaria com um cara é por que eu quero casar com ele?
__ Eu sei que você não quer casar. É só pra você ficar ligada.
__ Tá tudo bem, Borginho. Sou uma mocinha esperta.

     ***
Ele não passou lá no dia seguinte, nem no próximo, nem em dia nenhum das duas semanas que se seguiram. Nos primeiros dias ela sentiu um ligeiro incômodo, mas logo a vida seguiu e ela esqueceu. Até que, numa sexta-feira qualquer, quase um mês depois do incidente da padaria, eles se esbarraram na frente de um bar.

__ Dalila?

Ela o abraçou, um pouco mais efusiva do que esperava, e ficou surpresa consigo mesma. Mas manteve o abraço, que ele retribuiu sem estranhar.

__ Falando sério, que bom que você está vivo.
__ Desculpa não ter aparecido, fiquei super atolado com milhares de coisas. E não tinha seu telefone pra avisar que não ia dar pra ir.
__ Não, que isso, sem problema. Como você está?
__ Continuo miserável, mas adotei a atitude positiva de encher a cara e não falar sobre isso.
__ Meu Deus, você faz péssimas escolhas.
__ Verdade. Quer uma cerveja?

Eles encontraram uma mesa na parte de trás do bar e conversaram sobre amenidades por um tempo. Ela observou que a aliança continuava reluzente na mão esquerda dele. Ele observou que ela não tinha aliança. Ela recebeu mensagens, que ignorou. Ele não recebeu mensagens, mas foi abordado com muita empolgação por dois outros caras.

__ O que foi isso?
__ Ah, esses caras são da minha cidade. Eu moro em São Paulo há dez anos, mas sou de São Roque. De vez em quando encontro conhecidos por aí.
__ Entendi.
__ E você? É daqui?
__ Sim, sim. Nascida e criada.
__ E você faz o quê?
__ Eu trabalho pra uma editora. Na vida real, né. De noite eu combato o crime com uma bandinha. Toco baixo.
__ E o que a sua bandinha toca?
__ A gente toca músicas imortalizadas por grandes cantoras. Sabe? Madonna, Aretha, Diana, Beyoncé, Solange do Aviões.
__ Ok.
__ Mas a gente se veste de Elvis. A banda toda, só de meninas, todas vestidas de Elvis, cantando músicas famosas em vozes femininas.
__ Ok, ok. Interessante. Gosto.
__ E você?
__ Eu sou desenvolvedor de software. Estamos criando um app de delivery de gerenciamento de festas que saem do controle.
__ Isso é sério?
__ Você não faz idéia do quanto o mercado de festas que saem do controle é inexplorado. No nosso app você vai poder pedir bebida, comida, contratar uma equipe que faz pequenos consertos durante ou depois da festa, segurança, tudo que for preciso pra festa continuar descontrolada mas com um pouco de sabedoria.
__ Que ótimo!
__ Você vai ser minha primeira cliente.
__ Não vejo a hora de dar uma festa na mansão dos meus pais enquanto eles viajam só pra poder chamar a equipe que vai consertar o ovo fabergé que o idiota do meu namorado quebrou.

Ele deu um longo gole na cerveja.

__ Seu namorado vem te encontrar aqui?
__ Não, eu não tenho namorado. Nem pais que moram numa mansão com um ovo fabergé.

Ela deu um longo gole na cerveja.

__ E a sua esposa, que horas vem?
__ Provavelmente nunca – ele tentou rir mas soou como um latido.
__ Como assim? MEU DEUS, ELA MORREU.
__ Não! Não. Nós estamos nos divorciando.
__ Ah. Ufa.
__ Que alívio, né.
__ Olha, desculpa, mas é sim. Imagina a minha indelicadeza.
__ Enfim. Era por isso que eu estava chorando na padaria aquele dia. Eu tinha acabado de voltar do cartório.
__ Ah. Faz sentido. Desculpa. Por esse diálogo horrível, pelo que aconteceu na padaria, pelo seu divórcio. Sinto muito.
__ Tudo bem.
__ E o que houve? Quer dizer, a não ser que você não queira falar sobre isso.
__ Não...acho que não tem problema. Acho que no fim a gente foi deixando de ser casal, sabe? Não acho que tenha acontecido nada grave com a gente não. A gente se amava e se respeitava muito, a gente era feliz, a gente tentava fazer dar certo. Mas acho que ela foi me vendo mais como amigo que como amante com o passar dos anos.
__ Vocês ficaram quanto tempo juntos?
__ 3 anos de namoro e 11 de casamento.
__ E vocês se separaram numa boa?
__ Então...ela é o amor da minha vida. Quando ela disse que queria se separar eu talvez tenha insistido um pouco pra tentarmos mais. Fizemos terapia, viajamos, eu fiz um tempo de home office, o que obviamente só atrapalhou. Até que ela disse que não tinha como mesmo. Fiz uma mala e fiquei uns dias na casa de um amigo, mas achei que ela talvez só precisasse de um tempo pra si, até que os papéis do divórcio chegaram. Passei as duas últimas semanas procurando apartamento e tal.
__ Então foi rápido.
__ A gente passou o último ano agonizando. Parecia uma eternidade. Mas desde que ela me disse que era definitivo até o dia de hoje eu nem sei dizer o quanto passou, porque parece que só durou um respiro.
__ Olha, sinto muito mesmo.
__ Ah, que isso, tá tudo bem. Já me acostumei à idéia de viver sem ela.
__ Já?
__ Não, na verdade não. Mas o que se há de fazer, né mesmo? Eu tô bebendo ininterruptamente há três dias.
__ Bom, retiro o que disse, suas escolhas parecem razoáveis diante da situação.
__ Agora é a sua vez de contar sua grande tragédia.
__ Ah...é...bom, não sei se tem tragédia não. Minha família é meio normal, meus amigos são ótimos, eu amo meu trabalho e minha banda, tô solteira há um ano, tenho 5 gatos e é isso.
__ Ninguém partiu seu coração?
__ Sim, sim. Um músico. Foi horrível, mas daí pra nunca mais, né? Pra mim basta uma vez. Especialmente depois de um músico.
__ Músicos são dureza mesmo.
__ Só os homens.

Eles sorriram. Beberam mais, falaram mais, sorriram mais, ele tocou o braço dela repetidas vezes, ela afastou o cabelo dele dos olhos repetidas vezes. Ela se sentiu imprudente, ele se sentiu aliviado. Saíram do bar já era quase de manhã, caminharam juntos até a casa dela, falando alto na rua, de braço dado, com uma intimidade criada naquelas horinhas de álcool e fumaça de cigarro e música alta. Ele tinha um senso de humor incrível e ela era afiada, eles conversaram sobre amor, medo, morte, impostos e Plutão, ela mostrou fotos dos gatos, ele disse que sua banda preferida era Charlie Brown Jr só pra ela rir, ela cantou e dançou Elvis na esquina do apartamento dela e por fim eles se abraçaram longamente na despedida.

__ Você não vai me chamar pra subir, né. Que nem nos filmes.
__ Não.
__ Tudo bem.
__ Você ainda usa a aliança.
__ Eu sei. É hábito.
__ Negação.
__ Talvez. Capaz.
__ Mas foi uma noite ótima.
__ Foi sim. E eu continuo te devendo um sonho.
__ Olha, acho que você talvez precise mais do sonho que eu.
__ Talvez. Capaz. Mas acho que não. Hoje você me deu outra coisa.
__ Foi? Mas a gente nem subiu.
__ Foi. Você me deu fôlego.

Ele a beijou na bochecha, ela fechou os olhos e prendeu a respiração, quase esperando o desvio, quando deu por si ele já tinha dobrado a esquina.

__ Eita nós.